quarta-feira, 20 de julho de 2016

Pessoas normais me assustam (sobre a maioridade da minha filha)

Pessoas normais me assustam... É uma frase tirada de um filme. É uma frase que virou tatuagem. Quando eu estava no estúdio, no dia de marcar a pele, como tradicional presente de aniversário, me caiu a ficha da dimensão do significado desta frase.
Sou mãe intérprete. Intérprete e mãe. Ou uma mãe que se tornou intérprete por necessidade. Uma intérprete por tempo integral e, na maior parte do tempo, não remunerada. Mas, de um modo geral, sou uma péssima intérprete. Desde quando minha filha começou a se interessar pelos assuntos dos adultos, observando as caras e bocas de longínquas conversas, acabei caindo no mesmo erro dos adultos de meu passado, deixando-a de fora das conversas, dizendo que explicaria depois ou apenas resumindo um papo de 3 horas em uma ou duas frases. Assumo a culpa, ou a mea culpa.
A questão é que, desde então, Júlia passou a questionar sua surdez, sempre tão bem aceita por mim, o que me provocara muita tristeza. De repente, o mundo ouvinte passou a provocar dor e estranheza nela. Da mesma forma que eu me magoei algumas vezes ao trabalhar com surdos e pensava: "vou largar mão de trabalhar com isso, vou ficar só com a docência." Mas eu estava enganada. O mundo surdo não é um trabalho apenas. É parte da minha vida. E eu nunca consegui fazer com que o tal do "mundo ouvinte" se inserisse no mundo dela. Sim, pessoas normais assustam. E como. 
Em um - inicialmente - enorme universo familiar, apenas umas poucas pessoas aprenderam a comunicar-se com ela. Destas pessoas, apenas duas convivem hoje com ela. De resto, houve pouca procura, pouco esforço, pouca vontade. Foi então que, naquela tarde fria e chuvosa de sábado, há pouco mais de uma semana, enquanto ela marcava esta frase na pele, que eu entendi o quanto as pessoas normais devem, de fato, assustá-la. Engasguei. Estremeci. Procurei de todas as formas desviar o meu pensamento para qualquer outra coisa. Mas a frase ficou dias ali, martelando na minha cabeça. 
Sempre me esforcei para dar a ela tudo o que estava dentro do meu alcance. Mas ainda penso que meu maior presente foi, é, e sempre será a língua. A capacidade plena de ter comunicação, ao menos no nosso minúsculo núcleo familiar. E também embora eu muitas vezes negue algumas interpretações de mundo a ela. Faz parte. Às vezes não quero ser intérprete. Mas, em contrapartida, outras vezes, interpreto telejornais, blogs, novelas, filmes... É uma dualidade o que vivemos. Relação de amor extremo e ódio. Coisa de mãe e filha, mas intensificada mil vezes pela vivência com a deficiência.
Todos os dias aprendo muitas coisas com meus filhos. Digo e repito para eles que são a razão de eu acordar todos os dias e querer viver. Não fossem eles, a vida não teria nenhuma cor. Mas eu e Luan aprendemos e adentramos em um mundo diferente do nosso por ela. E isso modificou minha vida toda. Nossas vidas. Não fosse a Júlia, talvez hoje eu seria uma bióloga, ou veterinária. Ou talvez nem fosse nada. "Nossos destinos foram traçados na maternidade." É isso. 
Já escrevi tanto e tanto acerca da convivência, da dor, do luto, das aprendizagens e alegrias em se conviver com uma deficiência, mas nesta data esse texto ganha significado especial. Essa semana ela faz 18 anos. A maioridade de uma trajetória de muitas lutas travadas, batalhas perdidas e vencidas. Olhando para trás posso me ver sentada naquele banco de praça em frente à escola. Tardes inteiras de espera, para proporcionar a ela o que eu acreditava ser o melhor. Escola especial não tem em cada esquina. Era outra cidade. Quilômetros e quilômetros longe da minha casa. Carregava o mundo nas costas. Hoje vejo o quanto valeu a pena, o quanto a perseverança dá bons frutos.
Esse ano ela se forma no ensino médio, e tantas e tantas histórias temos para contar de todo esse tempo, está aí, moça decidida, personalidade forte (não sei a quem puxou), sabe bem do que gosta e o que quer. Tenho muitas razões pelas quais devo me orgulhar. Outras tantas com as quais me preocupar. Mas assim é ser mãe. E maternidade não é fácil. Sabemos que erramos tentando acertar. Sabemos que os erros machucam, muitas vezes, ambas as partes. Relação de mãe e filha é delicada... Mas, mesmo aos trancos e barrancos, chegamos aqui e vamos além, muito além. Num amor que não tem medida, que não tem como dimensionar, num amor que transformou e segue transformando a minha vida e as vidas de todos que se abrem para ela, de coração aberto.
Hoje posso olhar para trás e dizer que faria tudo, absolutamente tudo de novo: as noites em claro, os choros, a espera nas longas tardes na escola. Porque ser mãe é isso: é deixar seus sonhos guardados para tentar realizar os sonhos do outro. E ser mãe de uma criança com deficiência é nunca deixar de crer na superação e na bondade... Sou muito feliz por te ter, minha filha. Sou muito feliz por ter me apaixonado perdidamente pelos teus olhos castanhos naquela sala fria de hospital. Lindos olhos castanhos. Tenho muito orgulho de quem tu és e tenho certeza que terei ainda mais da mulher que tu estás te tornando. Te amo hoje e sempre e confesso hoje que as pessoas normais também me assustam. Sempre me assustaram!