quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Carta aberta para meu pai...


Pai...

Estou há muitos dias pensando no que escrever de ti, para ti... Como é difícil descrever certas relações, como é difícil tentar escrever sem abrir velhas cicatrizes, sem fazer sangrar antigas feridas...
Não tenho intenção de enfeitar ou tentar pintar de cor de rosa uma relação que foi, sim, conflituosa, mas que, justamente por isso, nos fez crescer tanto enquanto pessoas.
Lembro do nosso começo... que, obviamente, para mim não foi no momento em que abri os olhos para esse mundo, foi um pouco depois. Lembro do quanto te esperava sentada naquela janela, do quanto ansiei a tua vinda, do quanto fui triste com a tua falta, a tua ausência, e feliz com a tua chegada. Muitas e muitas vezes a espera foi em vão e, não importava quanto tempo eu esperasse por ti, bastava tu aparecer para que eu esquecesse as minhas lágrimas, a espera, a demora, a mágoa... Bastava tu aparecer para o meu coração se encher de uma alegria única.
Tu sempre foi a festa, a casa cheia, a risada gostosa. Deve ser justamente por isso que sempre tive tanto medo de te decepcionar. Pois é, começo a falar de mim, porque não tem como falar de ti sem falar de mim. 
A verdade, pai, é que passei boa parte da minha vida tentando fazer tudo certo, tentando desesperadamente conseguir tua aprovação no que quer que fosse. Mas as notas altas na escola sempre poderiam ser maiores - hoje entendo que esse era teu discurso incentivador naquela época, mas naquele tempo eu não entendia... - os presentes de dia dos pais feitos com tanto entusiasmo na escola às vezes levavam dias para serem entregues e eu... eu esmorecia... Veja bem, não estou te culpando, de maneira alguma, a questão sempre foi a expectativa... Ela sempre fode com tudo... E, no nosso caso, ambos tivemos. 
Sou tua primogênita, sei hoje, mãe de dois filhos, o quanto a gente erra (tentando desesperadamente acertar) com relação ao primeiro filho. Aliás, erramos sempre! Porque simplesmente não existe receita para ser pai, mãe, para lidar com outros seres humanos. Erramos porque cada um de nós é único e carregamos universos inteiros dentro da gente...
Sempre soube que tu queria um futuro legal pra gente, sempre soube que tu não queria que a gente passasse pelo que tu passou na tua vida, eu via o quanto tu te emocionava quando falava da tua infância difícil e eram nesses momentos em que eu me orgulhava tanto de ti. Eu sempre pensava: "Bah, ele conseguiu! Eu também vou conseguir!"
Depois disso, vieram as decepções, muitas, inúmeras delas! Lembro de ter te feito chorar quando disse uma vez que tinha vergonha de onde eu morava, para ti, que teve uma infância tão difícil, que chegou a morar na rua, aquilo soava absurdo. Depois, perdi a virgindade, engravidei, abortei, engravidei de novo, casei cedo... indicativos de um futuro de bosta, né? Fiquei casada dez anos com um cara que me agredia, tu descobriu da pior forma possível, num momento de crise. E, embora eu esperasse muito que alguém me tirasse daquela vida, desejasse muito que alguém desse o troco naquele sujeito, no fundo, no fundo, eu sabia que a escolha tinha sido minha e que somente eu poderia mudar aquela realidade...
Tu também me decepcionou. Foi aí que eu fui percebendo que tu não era aquele super herói que eu imaginava. Foi necessário, pai! Sofri demais para desconstruir as coisas que eu esperava de ti! Demorou tanto para eu perceber que tu era um ser humano e, como tal, também errava.
Demorou para que eu pudesse te reconstruir de uma maneira diferente dentro de mim. E, no começo, confesso que tu não me ajudou muito. Mas era tudo muito novo pra ti também, hoje eu entendo. Não é fácil para um cara com uma alma tão jovem que nem tu ser chamado de avô! (Risos!)
Mas, de "parente", tu te tornou um grande avô. Através dos meus filhos, tu foi te moldando para ser hoje esse grande avô pro Pedro. Que bom! A vida é assim, pai, as pessoas estão em nossas vidas com um propósito, quando cumprem seus propósitos, vão embora. 
Mas o amor, o amor é coisa engraçada... crescemos com a ideia - errada - de que o amor nunca muda ou nunca morre. Hoje eu entendo o amor de um outro jeito... às vezes sentimos raiva e até odiamos aqueles que amamos, nem que seja por alguns minutos... não é errado e não devemos nos culpar quando isso acontece. Às vezes precisamos nos distanciar daqueles que amamos, justamente porque precisamos de um tempo para reconstruir a pessoa dentro de nós, mas não significa que o amor tenha terminado.
Hoje vejo que o amor, ele muda, nos muda e não é e jamais será algo estático em nossas vidas. Eu aprendi a te amar e amar de novo muitas e muitas vezes na minha vida. E acho que ainda terão muitas outras... Nos constituímos amigos e parceiros, além de pai e filha, ao longo do tempo... Tu estava lá quando eu tive a crise de apêndice, tu estava lá quando eu levei uma das surras sérias do Guto, tu estava lá pra levar a Ju no médico quando o carro passou em cima do pé dela na escola. Tu esteve em tantos momentos, bons e ruins.
E eu, eu também estive lá, pai! Estive lá quando os términos dos teus relacionamentos foram doídos demais para tu suportá-los sozinho, quando tu precisou de um lugar pra ir, de pequenas coisas que um dia faltaram nos tempos de vacas magras... Temos esse raro privilégio de termos uma relação de amizade, que foi construída com sangue e lágrimas, mas que, a meu ver, se fortaleceu com o passar do tempo. Sei que posso contar contigo e tu sabe que pode contar comigo. E quem, Afinal de contas, pode dizer isso nos dias de hoje?
Tu és um ser humano muito lindo, talvez tu mesmo não tenha descoberto isso ainda, mas teu coração não cabe no teu peito, tu és generoso, sempre se doa para as pessoas que tu gostas. Mas o que eu realmente admiro em ti é a tua eterna juventude. Como diz aquela célebre frase, cujo autor não me recordo agora: "O corpo envelhece sem que a gente queira, mas a alma só envelhece se a gente permitir." Isso é um dom de poucos! Manter-se jovem! Eu admiro e respeito demais essa tua alma tão viva, tão leve... Ainda me sinto tão bem ao teu lado, tu ainda é a festa inteira, o cara alegre, o cara pra cima, que coloca todo mundo pra cima também, mas hoje já não me sinto presa em tentar te agradar, de forma alguma... "A nossa liberdade é o que nos prende!" Te amo muito, nunca duvide deste amor, nem mesmo quando estivermos afastados fisicamente! Porque amor latente também é amor!

A deusa que habita em mim saúda o deus que habita em ti!

Da tua filha, amiga e parceira de jornada, Carina.