sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Sobre filhos (com deficiência)

Como começar a falar a respeito da dor e da perda de deus? Não há meios leves para falar sobre questões tão ardentes... Simplesmente não há! Vamos ver... O que eu teria para dizer, seria uma monografia, uma tese de mestrado, de doutorado, sobre este assunto, mas vou resumir ao máximo para poder compartilhar alguns pontos que considero importantes.
Esta semana, li no facebook, foi muito difundido, inclusive, um artigo que falava sobre o abandono dos pais (entende-se pais = homens progenitores) aos filhos com microcefalia. Para entenderem melhor a respeito disso, é só pesquisar sobre o surto de crianças nascidas com tal patologia no Brasil e as reincidentes discussões se seria ou não provocada pelo zika vírus... Enfim, tal assunto esteve e está sendo difundido nas redes sociais. Mas me apeguei à questão do abandono, como se fosse novidade mães que tem filhos com deficiência serem abandonadas pelos maridos, ora, me poupem!
Falo por experiência própria. Somos responsabilizadas por todos, desde o nascimento dos nossos filhos. Nasceu com saúde? "Olha, que bezerrão, puxou ao pai!" Nasceu com algum problema? Culpa da mãe, não deve ter se cuidado o bastante, ou deve ser uma pecadora que está se redimindo de seus pecados... A questão, meus amigos, é que a crueldade perpassa as paredes de suas casas, sai às ruas, travestida de preocupação, mas, na verdade, é puro preconceito.
O abandono não se dá apenas quando o pai faz as malas e vai embora. O abandono pode ocorrer bem antes disso e vou contar o por quê. Eu criei meus filhos sozinha, mesmo tendo sido casada por dez anos. Sim, isso mesmo. A minha filha mais velha nasceu surda. Foi um choque para toda a família. Como? Por que? De onde veio a deficiência? Foram perguntas que ouvi e que ecoaram em mim por muito tempo. O segundo filho veio para que ela não fosse sozinha no mundo. Mas, enfim, foquemos nela. No começo, fui atrás de cursos de Libras, minha prima fonoaudióloga atendia a Júlia uma vez por semana em seu consultório praticamente de graça. Procurei escola cedo, queria me comunicar com minha filha, tinha urgência. Mas quem fez tudo isso, meus senhores, fui eu. Sim, por certo devem estar pensando, "claro, é obrigação da mãe, já que não trabalhava"...  Besteira! 
A vida de meu ex marido não mudou nada. Continuou nas farras, finais de semana intensos, com churrascada e beberagem, amigos, casa cheia, praia... A única responsabilidade que tinha era o trabalho. Teve amantes, inúmeras. Coisa de homem, né, ainda mais porque casou cedo. Sim, muito normal. Inclusive a violência física e psicológica que ele praticava, normal, também. Então, além de enfrentar todas estas mazelas de meu casamento (nada perfeito), eu, com 21 anos, tinha dois filhos e uma pessoinha com deficiência, cujos caminhos para chegar em seu coração, precisei descobrir sozinha. Eu não sabia, mas já havia sido abandonada ali. Quando ia para Esteio levá-la a uma escola especial (a única da região) e ficava quatro horas lá esperando por ela. Quando o irmão pequeno passou a ter que ir junto nessas andanças, que tornavam-se verdadeiras viagens, já que tinha que carregar a casa nas costas para dar-lhes um mínimo de assistência. Quando, mesmo sendo uma mulher que me dedicava à casa e aos filhos, ainda levei o primeiro tapa. Fui abandonada quando a violência seguiu e se intensificou. Fui abandonada quando a única pessoa que podia me socorrer protegeu meu agressor.
O fim do casamento, quando a Júlia tinha 11, 12 anos, somente aliviou a carga. Já tinha acabado muito antes de começar. Os filhos com deficiência são das mães. São elas que os carregam nos braços, mesmo quando não cabem mais neles. Sim, isso mesmo. São elas que presenciam as angústias, o preconceito, a dor. Vamos falar de dor? Sim, vamos. Ela não tem fim, se querem mesmo saber. Acompanha-me em todos os lugares, onde quer que eu vá. No dia em que peguei o diagnóstico naquele hospital passei a questionar as intenções dos deuses para comigo. Deus, o ser onipotente, onipresente, duvido que exista. Desde aquele momento em que tive de matar minha filhinha saudável para colocar a outra em seu lugar. Sim, muita gente não sabe, mas é isso que acontece. Por isso o luto. 
Aceitei minha filha de uma forma que ninguém na família jamais conseguiu, me comunico plenamente com ela, sempre a tratei como trato o irmão, que não tem deficiência alguma. (Embora ambos pensem que sempre tratei melhor e dei mais regalia ao outro.) Mas, apesar de ter estudado, de ter corrido atrás de informação e de hoje trabalhar com isso, não consegui evitar as crises de identidade dela. Não consegui evitar de que ela me questionasse inúmeras vezes a própria deficiência, partindo meu coração em mil pedaços... A dor que isso provoca é inenarrável. Não adiantaria tentar escrever a este respeito. A solidão dela é a minha solidão. Em todos os lugares, onde vamos, só estamos bem se estamos sozinha e se posso me dedicar somente a ela. Onde tiverem outras pessoas, ela se isola, vocês tem noção do que é isso? Do que é compreender isso e ter de viver com isso todos os dias de sua vida.... Eu a criei autônoma, independente, mas não há um só lugar do mundo em que eu a veja plena, se eu não estiver por perto. Isso me dói demais. Mas já entendi que essa carga é minha. E que, por certo, não poderei colocar na porta de ninguém. 
Dizem que os deuses não dão a ninguém um peso maior do que podem carregar. Todos os dias questiono a sua sabedoria. Todos os dias me pergunto se era mesmo pra ser eu. Era. Vocês podem achar errado eu chamar de carga, mas, vejam bem, chamei de carga, não de peso ou fardo. Embora por vezes pareça. Conviver com uma deficiência não é fácil. Os pais correm, a maioria das pessoas corre. É diferente de se escolher trabalhar com isso. Muito diferente. Porque, quando você trabalha com isso, você chega em casa e fecha a sua porta e consegue desligar-se de tudo. Eu, embora também tenha escolhido trabalhar com isso, chego em casa, fecho a porta e ainda tenho de conviver. 
E a revolta dela com o mundo é também minha revolta. E as agressões dela para comigo, embora doam muito, eu sei, no meu íntimo, que não seriam para mim, caso ela tivesse outras pessoas tão próximas dela quanto eu. Então, por isso eu torno a dizer... Estou só nesta batalha. Somos eu e ela, somente, nos construindo, nos desconstruindo, nos agredindo, nos amando. Porque é assim que é. Não sei se outras mães que enfrentam as mesmas batalhas vão sentir-se regozijadas ou se vão me xingar, mas eu sinceramente tinha de me manifestar sobre isso. E, notem, não comparei o abandono com aborto. Porque nós, mães destas crianças, tivemos coragem para tê-las, mesmo assim, sozinhas. Tivemos força para criá-las, mesmo assim, abandonadas. Tivemos orgulho de lutar por seus direitos, mesmo assim, desvalorizadas.
Vocês que acham que a deficiência é culpa da mãe, por qualquer motivo, razão ou circunstância, parem e pensem no que estão fazendo. Somos guerreiras, somos deusas, leoas. Abraçamos nossas crias e as mostramos ao mundo com orgulho, porque são as deficiências, são as diferenças, que humanizam e que, portanto, trazem um pouco de cor a esse mundinho insano e cruel. Eu amo minha filha, apesar de todas as dores que compartilho agora com vocês. Nada mudou isso, nada vai mudar isso. Sei que essas mães amarão seus filhos, lutarão por eles. E isso me basta. Abandono? Preconceito? Dor? Sim, sabemos o que é isso! Não é novidade. Mas cá estamos, Evas, Marias, Joanas, Carinas... Com coragem seguimos em frente porque é isso que fazem as pessoas que carregam no peito um coração! Obrigada, de nada.