terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Um outro tipo de solidão


Eram pouco mais de quatro caixas ao lado da porta que aguardavam tua ida definitiva nem sei pra onde... Tudo foi muito intenso e tudo foi uma mentira, quando terminou, pouco mais de três meses depois de ter começado, eu não sabia quem tu era. Nem onde morava. Nem quem eram teus familiares e amigos...
Eu, transparente e intensa demais, não abri apenas as portas da minha casa - ou as pernas - pra ti. Abri o livro da minha vida, com todas as suas passagens sujas, sangrentas e cômicas... Quando me dei conta disso, foi desesperador. Tu não levou embora só a minha tevê, ou minha dignidade, tu levou embora minha capacidade de confiar de novo em qualquer ser humano hétero do sexo masculino.
Já havia, há muito tempo, me decepcionado de inúmeras formas com meu pai, que durante muito tempo fora minha referência de salvação de um mundo que não era nada legal comigo... Há pouco tempo, veio a decepção com meu filho, que criei com tanto amor e com tantos valores que não só acredito, como pratico... E foram tantos abusos e tantos relacionamentos fracassados e traições... Durante muito tempo pensei que o problema era eu. Ou minhas escolhas. Ou talvez de fato o sejam, mas hoje tem dias em que não sinto tanta culpa de ser quem eu sou.
O fato é que, eu, que achava que não tinha nada, em função de morar agora de aluguel e me sentir tão bosta por não ter um teto sob minha cabeça para chamar de meu, me dei conta, olhando aquelas poucas caixas que te aguardavam na porta de baixo do prédio, de que tenho muito mais do que tu e que, para ter todas essas coisas, nunca precisei roubar ou pisar ou enganar ninguém. Não me escondo nas sombras e todo mundo que me conhece sabe exatamente quem eu sou e as coisas que defendo. Nunca precisei dizer que amava sem sentir, de fato, o amor invadindo todos os poros do meu corpo. E já amei e me enganei tantas e tantas vezes, mas fui honesta aos meus sentimentos e aos do outro. Não sei como é mentir que ama. Não sei fingir ser o que não sou. E ser transparente assim já me fez sofrer inúmeras, incontáveis vezes, mas não trocaria essas lágrimas que derramei por ser um monstro como tu és. 
Quatro caixas são tuas posses, tu levou de Uber, não sei para onde, a outra tv que tu trouxe é uma merda, mas nada neste mundo substitui a tranquilidade de deitar a cabeça no travesseiro à noite e andar de cabeça erguida na rua.  Então, apesar de toda a tristeza que esse fim me causou, de estar experimentando um tipo de solidão que ainda não conheço, hoje tenho clareza que não são apenas posses materiais que tenho mais do que tu. Tenho caráter até para assumir minhas próprias falhas, que sei que são muitas. Minha dignidade eu trouxe de volta quando fui preenchendo os espaços vazios que tu deixou com as minhas coisas. A casa, apesar de alugada, voltou a ser só minha e da minha filha e aos poucos vou mostrando a ela que nós duas nos bastamos. 
E talvez, porque não sei ainda ao certo, mas talvez, essa solidão que experimento hoje e que tem me machucado tanto, seja justamente porque, depois de ti, vou demorar muito tempo para voltar a acreditar que possa viver outra história - não de amor, que já faz algum tempo que não acredito - mas de parceria e companheirismo. Talvez acostume com essa solidão e nunca mais acredite e, como me disse um ex namorado (que amei muito), eu morra sozinha com 27 gatos. 27 é um número bem simbólico. Já tenho 9. Sete meus e dois na rua, que cuido e dou comida. Então, faltam ainda 16 gatos pra completar a profecia e uma casa para alugar que aceite todos esses bichos... Tomara que pelo menos seja na praia ou em alguma cidadezinha de interior onde eu possa tomar banho e energizar meus cristais numa cachoeira vez ou outra.
Cada um com sua riqueza, né? A ti, desejo nada menos que a lei do retorno. E sei que a solidão é o de menos perto de tudo que tu vai ter para pagar num futuro não muito distante. Como era mesmo o ditado? Antes só...