sexta-feira, 22 de maio de 2020

Onde são os lugares dos "não lugares" que a escola produz?


Começo este texto com dor no coração. Trabalho há oito anos com inclusão de pessoas com deficiência no âmbito escolar e, justamente por isso, não é fácil relatar o que tenho para relatar sobre este delicado tema. A questão é que a inclusão ainda não se estabeleceu e não se sabe se um dia realmente se estabelecerá. Desde a Constituição Federal de 1988, que determina  “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art.3º inciso IV). Define, ainda, no artigo 205, a educação como um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. No artigo 206, inciso I, estabelece a “igualdade de condições de acesso e permanência na escola” como um dos princípios para o ensino e garante, como dever do Estado, a oferta do atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (art. 208), ainda não temos os direitos das pessoas com deficiência garantidos. Desde lá, vieram mais inúmeras leis, decretos, notas técnicas que sempre tiveram como principal objetivo amparar e garantir acessibilidade plena a essas pessoas, a exemplo temos a Declaração Mundial de Educação para todos, de 1990, a Declaração de Salamanca e a Política Nacional da Educação Especial, ambas de 1994, dentre tantas outras que foram complementando-se entre si.
É importante falar da legislação, justamente para mostrar que não falamos de algo novo, estamos em eterno processo de construção, desde então, sem, de fato, conseguirmos dar algum passo adiante. Lembro-me bem que nas aulas da faculdade: a professora Maura Corcini Lopes dizia que "a inclusão não é lugar de chegada", no sentido de que o processo de transformações e mudanças provocados pelos alunos com deficiência nas escolas é muito mais importante do que o resultado final. Aliás, qual seria o resultado final? Que lugares são estes que tanto almejamos chegar e que, apesar de tanto caminharmos, nunca chegamos? A inclusão não é o lugar, mas a escola o é. Lugar de tantos universos que dividem espaços, sentires e aprendizagens. A escola, o "lugar de todos", tem sido de todos mesmo? 
A provocação que tem por objetivo este artigo é justamente essa: o que estamos fazendo para que a escola se torne, minimamente, o espaço democrático e acolhedor que queremos? Nossas atitudes, frente ao novo, frente ao que desacomoda, ao que nos tira de nosso lugar de conforto, é positiva, é pró ativa, nos faz pessoas melhores? Tenho visto e ouvido tantas coisas nas escolas em que tenho passado, seja para trabalhar, seja para palestrar, que me mostram que os responsáveis por promover a acessibilidade plena e permanência dos alunos, considerados "diferentes" na escola, são as mesmas pessoas que vão contribuindo para a construção de lacunas, lugares vazios, onde dificilmente estes alunos se encontram ou encontram meios de preencher esses espaços. 
O lugar de onde falo diz muito. Sou professora, formada em pedagogia, com habilitação em educação especial, fiz especialização em AEE e uma pós graduação não concluída em neuropsicopedagogia (faltou a última disciplina, abandonei o curso por decepção mesmo, ao perceber que eu sabia mais do que muitos dos professores que estavam ali me ensinando e que todo o material didático, ou pelo menos parte dele, eram retirados da Wikipedia). Mas, ainda mais importante que minha caminhada acadêmica, é minha caminhada como educadora de uma criança surda. Minha filha, Júlia, hoje tem 21, quase 22 anos, inicia sua caminhada acadêmica agora e, com ela e por ela, que minhas maiores aprendizagens foram realizadas. Essa caminhada me (re)significou e (re)significa muito mais do que qualquer teoria que tenha passado por mim. Porque essa caminhada faz de mim humana, antes de ser profissional ou qualquer outra coisa. E, como dizia Carl Jung, "conheça todas a teorias, todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja, antes de mais nada, outra alma humana".
Agora é possível fazer um apanhado de tudo o que estou tentando dizer. Até hoje, tamanhos enfrentamentos e embates que tenho nas formações que dou para professores, sempre tive que me apresentar como mãe de pessoa com deficiência antes de falar do meu currículo lattes. As resistências frente ao novo, frente ao desconhecido, às vezes são cruéis, sistemáticas, estão impregnadas em um sistema que já não investe o suficiente em educação, que dirá nos educadores. As escolas permanecem num eterno "despreparo", porque, muitas vezes, é mais fácil justificar o erro do que deixar de cometê-lo. 
E a inclusão, a legislação, como bem tenho bradado por onde vou, não irá retroceder. E eles estão chegando em nossos espaços, pessoas com deficiências sensoriais, pessoas autistas, com altas habilidades (que por mais incrível que possa parecer, estas últimas também não são bem vistas dentro das instituições de ensino). Continuarão chegando, mesmo que nunca estejamos preparados para recebê-los. Essa é a nossa realidade atual. Não vai mudar. Então, pergunto novamente, quanto mais resistiremos? Eu complementaria a frase dita pela cantora Pitty, que brilhantemente disse, em um programa de tv: "Pois eu não volto pra cozinha, nem o negro pra senzala e nem o gay pro armário, o choro é livre e nós também." As pessoas com deficiência também não retornarão às clínicas. 
Hoje, com um governo de retrocessos no Brasil, vemos, desde o início deste mandato, ou antes mesmo do início dele, a volta do eugenismo, onde há uma falsa crença de que as minorias devem curvar-se às maiorias, ou sumirem (dito pelo próprio presidente, então candidato, em 2018), que certamente deu respaldo para o começo de uma retirada de direitos sem precedentes, depois de tantas movimentações e conquistas das pessoas com deficiência e comunidades envolvidas. Há um silenciamento da luta, sendo que ainda há tanto para ser conquistado. 
Então, se eles chegam a nós todos os anos e sabemos que, mesmo com retirada ou não de direitos, o lugar destas pessoas por certo é onde elas quiserem, porque insistimos em dizer que a escola não é o lugar delas? Como podemos lutar por democracia e justiça quando impedimos pessoas de estarem de forma plena em determinados lugares e de exercerem seus direitos? Negamos a elas o acesso ao conhecimento alegando que não há preparo, que não há estrutura e eu fico aqui me perguntando até quando essas coisas irão nos paralisar e fazer com que a gente siga esperando que a solução (?) venha do governo, do outro?
Enquanto isso, nossos alunos com deficiência estão lá, sentados em suas cadeiras, invisíveis. E nós, com nossa não ação, vamos construindo os não lugares, as impossibilidades e as incertezas. Mesmo sem querer, vamos dizendo ao outro que é improvável, impossível, que ele - o outro - é incapaz. E nessas cadeiras vazias aos nossos olhares estão sujeitos que vão se vendo desta forma, anulados em suas potencialidades, incertos de suas identidades. Estamos cometendo um crime! E, mesmo construindo os não lugares, somos incapazes de dizer, então, quais são os lugares destas pessoas, afinal? E, não, elas não voltarão para as clínicas!