sexta-feira, 8 de julho de 2022

O cromossomo atípico




 O sinal de síndrome, em Libras, é na mão, um polegar que corre pelos dedos, justamente porque são inúmeras, muitas sequer descobertas pela ciência. Nicolas dorme com carinho na mão, ele gosta de observar as próprias mãos e as mãos das outras pessoas e, quando estou com ele, deixo ele ficar horas observando minhas mãos e meus dedos... É uma das muitas formas que demonstro meu amor por ele...

O diagnóstico de síndrome não é algo fácil de se ter, há de ser feito um estudo genético, que, muitas vezes é caro e inacessível, conseguimos o do Nicolas pela justiça. Mas o diagnóstico é certeiro e inquestionável, caso ele exista. É o cromossomo tal, de tal cadeia e daí a leitura vai sumindo, conforme as lágrimas vem vindo... Não tem como questionar, não tem como negar, mas me digam como aceitar, porque ainda não descobri um jeito. 

Fui mãe atípica. Isso significa que minha primeira filha nasceu com uma deficiência. Corri atrás, lutei muito por ela. Mas ser avó atípica eu não esperava. Tô me permitindo viver o luto, chorar na hora do banho, voltar inteira e sorridente pra ele e pra minha filha. Não consegui e não consigo ser forte. Preciso me permitir fraquejar neste momento. Qualquer diagnóstico que nos informe a diferença não é fácil, ainda mais nos dias de hoje.  

Quando Nicolas estava nos hospitais lutando pela vida, foram tantos os diagnósticos... Ele foi superando um a um. O último havia sido de paralisia cerebral. Já tive alunos com essa patologia, e sei que se forem estimulados podem ter uma vida normal e autonomia. Mas síndrome é decisivo. Um carimbo no passaporte. Não tem volta, não tem nada que possa mudar, não tem cura. O que recebemos foi uma série de características. Muitas delas ele já tem. 

Tenho vivido os dias depois do diagnóstico longe de mim mesma, me assisto trabalhando, passando os dias na normalidade, enquanto essa outra parte, a que está longe, grita, chora, sangra... Se Deus existe, tenho brigado com ele. Muito. Não entendo o que precisamos aprender, que lição ficou para trás em minha caminhada. O que aconteceu conosco pra sermos escolhidos para todo o processo novamente? 

Quando Nicolas estava no hospital, em Passo Fundo, eu anotava tudo, pesquisava, disse uma vez para uma amiga que ele superaria tudo e eu escreveria um livro sobre isso. A síndrome traz o medo: não existe plasticidade cerebral, o que existe é a possibilidade de ele ser mais funcional ou não, pela estimulação que receber agora. É isso. Já existem marcas e possibilidades futuras reais e isso me assusta muito. 

Será ele capaz de ler, ler o mundo, escrever, se vestir e andar sozinho, namorar? Trabalho com pessoas com deficiência há onze anos. Já tive alunos das mais variadas patologias e uma coisa que sempre ficava pensando era isso: algumas patologias já determinam que não poderão viver sua sexualidade, suas relações afetivas serão limitadas à família. Isso me entristece tanto, mas tanto... 

Não tenho intenção ou capacidade de saber o futuro, há muito pouca informação sobre essa síndrome, mas ainda gosto de pensar que um diagnóstico não define um sujeito. Como professora, sempre acreditei e investi nas potencialidades dos meus alunos. Como avó, tenho o dever de acreditar e investir nas potencialidades do Nicolas. E que essa USP9X seja só um nome assustador para aquilo que ainda não tem nome. 

E tu, Nicolas, se um dia puder ler esse texto, eu espero que sim, ou se alguém ler pra ti, saiba que meu amor por ti é imenso, nunca havia sentido nada igual na minha vida. E se por um acaso, tu não puder entender o que está escrito aqui, vou te demonstrar esse amor em cada gesto, em cada sorriso, em cada momento em que eu dividir esse caminho terreno contigo. Obrigada por ter escolhido ficar e, principalmente, por ter nos escolhido para dividir esse caminho. Te amarei até o fim dos meus dias e nas próximas vidas que tivermos. 


quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Tornar-se mãe!


 Um dia, há muito tempo atrás, descobri que nos tornamos "mães" desde o momento em que pegamos um pedaço de papel escrito "positivo" nele. A partir daí, começam mudanças em nossos corpos e nossas vidas que jamais voltam a ser o que foram, nem por um segundo.

Eu já falei em outros textos meus do quanto a Júlia - e depois o Luan - me transformaram, cada um com seu "modus operandi" desde que estavam na minha barriga. Como escreveu Diana Corso, num de seus belíssimos textos sobre sua experiência de maternidade, os dois também são verão e inverno, calmaria e tempestade, sol e lua... Me ensinam muito até hoje e sei que aprenderei com eles até o fim dos meus dias.

Mas estou aqui pra falar da experiência que estou tendo em ver minha filha tornar-se mãe, que vai muito além de me tornar avó (que tenho muito orgulho em ser). Enfim, Júlia teve uma experiência de gravidez diferente das minhas. Saudável, ativa, valente. Nem de perto sofreu as dores físicas que sofri, em ambas gravidez, por razões diferentes... Foi lindo acompanhar a barriga crescendo, as birras dela com fotos, nossas brigas diárias pra que ela diminuísse um pouco o ritmo com o crescer da pança... 

Curtimos todos os momentos junto com minha mãe - a bisa, quem diria - de comprar roupinhas, acessórios, lavar, arrumar... Foi mágico! Tão mágico que em nenhum momento jamais imaginamos estarmos onde estamos agora lutando pela vida.

A cesárea da Júlia foi a sua primeira experiência de dor física severa. Tirando tombos e machucados de infância e idas infindáveis a hospitais para exames, ela nunca havia passado por isso. Eu tive medo porque pensei que ela padeceria... Mas não, pelo contrário, foi corajosa desde o momento que a vi naquela janela da saída da sala de recuperação. Enfrentou a dor com uma bravura imensurável, tanto que 8 horas depois, eu já estava ajudando-a a tomar banho, em pé, sem cadeira nem andador.

Depois do sofrimento físico, das dores inerentes da cirurgia e do pós operatório, veio o sofrimento de ter o filho dela numa UTI, com prognósticos terríveis que me faziam segurar o choro a cada vez que eu os interpretava pra ela. E como chorei escondido dela. No banho, no almoço que eu não ia pra poder chorar, nas pequenas saídas ao banheiro. 

Ir embora pra casa sem o filho nos braços deve ter sido o maior dos sofrimentos pra ela, mas nunca a vi sem a serenidade e a força no olhar. Viemos pra Passo Fundo, 4 horas longe de casa, na mesma ambulância em que veio o Nicolas na encubadora. Eu e ela. Algumas roupas e muitas, muitas dúvidas e medo. Tivemos ajuda de amigos para termos onde ficar, conhecemos pessoas boas que nos ajudaram a estabelecer nossa rotina de visitas e espera, muitaaaa espera... 

Aqui, também iniciamos uma caminhada árdua de prognósticos desanimadores e às vezes desesperadores. Só a vi chorando uma única vez em todo esse tempo. Uma única vez. Ela passa horas prostrada na frente de uma cama de plástico minúscula, sem ouvir os barulhos dos aparelhos ligados ao bebê e, durante muito tempo, sem sequer poder tocá-lo. Mas nunca abriu mão de passar essas horas todas apenas observando seu filho.

Cada dia de pequenas vitórias comemoramos com olhares cúmplices e sorrisos... Hoje saiu 15ml de leite, hoje pude trocar uma fralda, hoje peguei ele no colo, hoje ele ficou no canguru... E assim, a cada dia que vem se passando, em nossas caminhadas matinais rumo ao hospital, em nossas refeições compartilhadas, em nosso cansaço no fim da noite, tenho visto a dor, o sofrimento, mas também a magia e a beleza de minha filha se tornar essa mãe maravilhosa, essa mulher valente, forte e brava que tem se mostrado a cada novo dia...

Todas as dificuldades que compartilhamos, as lágrimas, os sorrisos, hoje ganham um novo significado... Já tinha falado que lar é onde o amor está. Aqui em Passo Fundo não é diferente. Mas vai muito além disso. Lar é onde estamos juntas. Lar é o que temos uma dentro da outra. E isso não vai mudar, onde quer que a gente esteja. O Nicolas sente esse amor. Sente essa mãe. E que mãe! Extraordinária! 

Se tornar mãe dói. Mas ver uma filha se tornar mãe dói mais ainda. Mas que maravilha que é! Que lindo! Que mágico! Que oportunidade maravilhosa de poder estar com ela e cuidar dela neste momento. Obrigada, universo! 



quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Outras moradas...


 Fazem dias que fizemos deste novo lugar nossa morada. Eu não esperava. Ninguém esperava. A gravidez da Ju vinha bem. A Ju sempre foi mais forte que eu. Estava ativa, saudável, estávamos fazendo planos... Chá de fraldas, book que ganhou de uma amiga minha... Enfim...

De repente, um mal estar nos trouxe aqui e aqui estamos sem data para sair. Não tem como eu não me lembrar, automaticamente, das tantas vezes em que estivemos, eu e ela, nos mais diversos hospitais de Porto Alegre, numa peregrinação incansável, exames e mais exames, buscando a causa (ou a cura?) da surdez. Outras tantas em que a asma, a pneumonia, alergias diversas me fizeram questionar inúmeras vezes a existência de uma divindade...

Fizemos, com nossos olhares sempre cúmplices, antes mesmo de nos comunicarmos, de muitos "não lares", nossos lares. Longe de casa, só tínhamos uma à outra. E ali foi se construindo uma relação que vai, até hoje, muito além da maternidade. Uma relação forjada na dor, no sofrimento, mas também num laço fraterno difícil de definir às pessoas que não convivem com uma deficiência.

Foram muitos dias fora de casa, inclusive quando iniciamos o processo de escolarização. A escola especial era em outra cidade e nos obrigava a ir "de mala e cuia" pra passar a tarde lá esperando. Outros mundos que foram se revelando e se fazendo um pouco "nossos". 

Júlia sempre foi uma grande guerreira, desde que veio ao mundo. Lutou pela vida dentro de mim e seguimos lutando juntas quando ela conheceu o mundo. Jamais esquecerei os olhos de jabuticaba me fitando na maca ao lado naquela manhã fria... Apgar 2, passou ao 8. Ela queria viver. E eu a queria tanto! 

Hoje estamos aqui nesse lugar que não sabemos por quanto tempo será nossa morada também lutando pela vida. Mas a minha certeza de que o Nicolas é tão forte quanto nós duas e voltaremos ao nosso lar ainda mais unidos é o que me faz esperançar todos os dias. 

Eu sou a única pessoa que pode fazer outras moradas com ela, e isso às vezes é um privilégio e às vezes é um peso. Sou a única pessoa da família que se comunica plenamente com ela. Antes porque era mãe, a linguagem era umbilical. Hoje porque sou a única que aprendeu a língua dela. Como eu sempre disse, nunca coloquei a responsabilidade em ninguém. Eu assumi e assumo. Mas às vezes é triste. Mais pra ela que pra mim...

Ontem eu a vi frágil. Chorou pedindo pra ir pra casa. Eu fico destruída por dentro. Mas tudo isso é parte do que vamos sendo. As lutas, muitas lutas... As vitórias, as derrotas... Hoje esperançamos, as duas, voltarmos ao nosso castelo. Mas, se não der, não importa, estamos juntas e fazemos ninhos em outros lugares, porque lar é onde o amor está. 


domingo, 1 de novembro de 2020

Um novo tipo de solidão

 


Gosto de fechar os olhos nos dias de vento e deixar o sol brincar de caleidoscópio com o balanço das folhas das árvores. De olhos fechados, "vejo" o jogo de luz e sombras incessante que rapidamente me remetem aos dias de verão da minha infância...

Hoje o vento está frio, mas o vento morno do verão me traz de volta cheiros e sensações (às vezes não tão boas). Acho que amo o verão por isso. Por esses momentos que só dias solares proporcionam...

Eu, apesar de ter muitos primos que também iam na casa da minha avó, sempre fui muito sozinha (não sou daqui, lembram?) e, na vida adulta às vezes esse sentimento de solidão fica diferente.

Recentemente abri mão de relações sem afeto e sem futuro. Sei que foi uma escolha correta e não questiono isso. Mas a falta da presença virtual dessas pessoas às vezes ainda dói. É um novo tipo de solidão. 

O advento das redes sociais se fortaleceu diante da pandemia e, muitas vezes, nos proporciona estarmos próximos de quem está distante. Mas, para uma pessoa ansiosa como eu, é uma eterna espera. Uma expectativa doida de que alguém tenha interagido. Aí o lance de não desligar nunca, estar sempre cuidando pra ver se tem alguma mensagem e a tristeza de saber que nenhuma mensagem será de nenhuma dessas pessoas...

A gente demora a acostumar com as ausências. Demora mais ainda quando a impossibilidade é dada pela vida. Não foi escolha nossa, mas teve que ser. Melhor doer agora do que deixar destruir tudo pra ter que reconstruir depois.

Então, quando fecho os olhos numa tarde de domingo, curtindo o farfalhar das folhas nas sombras dos meus olhos fechados, é paz ou solidão? Um pouco dos dois, eu diria... E tá tudo bem! Não vai doer pra sempre. Nunca dói pra sempre! 


quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Meu lugar não é aqui

 


Tenho pensado muito sobre o tempo... Escrevi sobre ele outro dia e o quanto tem me atravessado nestes dias em que tudo parece parado, em que os dias parecem todos iguais... 

Outro dia li um texto que dizia que o tempo não passa, afinal, ele é eterno. Nós é que passamos por ele. Faz sentido. O tempo sempre esteve e sempre estará aqui. Nós não. Um dia voltaremos pra casa, como costumo dizer...

Biologicamente, nossas células já iniciam o processo de envelhecimento desde o momento em que nascemos. É a boa e velha pergunta: "cada dia que passa, desde então, é um dia a mais ou um dia a menos?"

Eu, autêntica aquariana, desde criança, rebelde, do contra, com certa inteligência acima da média, comecei a perceber que, não importava o que eu fizesse, eu simplesmente não me encaixava... Eu era literalmente "o pino redondo nos buracos quadrados"... 

Lugar nenhum no mundo me acolhia... Nem minha casa, nem a escola, nem a casa da minha vó, embora lá os verões tenham sido mágicos na minha infância... 

Essa sensação perdurou durante toda a adolescência e, com ela, uma vontade doida de voltar pra casa. Na vida adulta, às vezes sinto que se agravou esse sentimento.

Acabei comprando muitas brigas pra tornar esse mundo mais "habitável", não só pra mim. Levantei bandeiras da inclusão, da justiça social, da proteção animal. Encontrei nessas lutas uma razão para, pelo menos tentar, tornar o mundo o lugar acolhedor que sempre buscara...

Mas a questão é que não sou mesmo daqui. Isso às vezes me alivia e outras vezes me assusta. Alivia porque vejo que não estou caminhando junto a essa parcela da sociedade doente e que adoece os outros. Assusta porque, se não é aqui minha casa, e de tantas pessoas que andam comigo na contramão do mundo, pra onde iremos? Onde estaremos a salvo? 

A consciência de que nada é, tudo está, porque o tempo não nos atravessa, nós é que o atravessamos faz com que às vezes eu me sinta tão só... A consciência da finitude de todas as coisas ou, como diria o Dom Juan, de Castaneda, o que diferencia o guerreiro de um homem comum é a consciência de sua morte. 

Vivemos tempos estranhos. Não, não sou daqui. Muita gente não é. E muita gente tem voltado pra casa nesses dias tristes. Eu, hoje, quero ficar mais um pouco nesse lugar estranho porque o que se aponta, logo ali, na frente, é um futuro cheio de vida, cor, ancestralidade. Quero viver pra ver isso. Sentir. Sorrir e chorar. Depois, estarei pronta pra voltar pra casa. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Clonazepan 2mg


Estou em terapia já faz mais de ano. Aliás, voltei a ela, depois de anos me virando como dava... Um remédio aqui, um fitoterápico ali, chá, ritual, simpatia e, de repente, percebi que não ia conseguir sozinha - de novo. 

Mas comecei a terapia talvez meio tarde e as crises já estavam intensas demais e a dor, a velha e conhecida dor, não esperou a cura, teve urgência em ir embora... 

Daí foi um pulo pra mais uma tentativa de "voltar pra casa"... É incrível que toda vez que tentei o suicídio, me lembrei das dores antigas, além das novas... 

A Carina criança, abusada, esperando pelo pai na grande janela, as perninhas balançando pra fora, o tempo, o pai que não vinha, a desilusão... A Carina adolescente, que ñ tinha lugar no mundo pra ela. Melhor aluna. Pior pessoa. Habilidades na escrita, no desenho, na solidão... 

Aí, nesses momentos, sempre almejava o glamour dos pulsos cortados, o sangue, a dor punjente em quem outrora me machucou. Mas tudo que tive foi o veneno, o remédio, o vômito e a volta vergonhosa a esse mundo que não queria mais ficar. 

Eu queria não ter de assumir fracassos. Tão inteligente, desde pequena, tão talentosa, mas incapaz de construir algo que fosse concreto: seja relacionamento ou patrimônio... Ir embora é muito mais difícil que ficar. Mesmo que ficar signifique olhar no espelho todos os dias e sentir-se insignificante. 

E tentei de tudo pra me sentir mais gente: emagrecer, academia, dietas e chás milagrosos, pensamento positivo, como todo mundo fala, ocupar minha vida com horas intermináveis de trabalho. Nada, absolutamente nada preencheu o vazio. 

Tenho amigos, filhos, uma parte da minha família que me é essencial e importante, então o que acontece? Nunca soube explicar. Desde os 16 anos fazendo terapia, tomando remédios, tentando me enquadrar num mundo que cada vez mais se distancia daquilo que acredito... 

E, acreditem, o faço por vocês. Para não ter que ver olhares decepcionados me perguntando: "nosso amor por ti não basta?" Mas não é sobre amor. É sobre dor. E às vezes é tanta dor... É a falta de grana, é o trabalho triplicado pra não ter adquirido quase nada, é a crise com o filho, são as contas não pagas, é o não saber o que vamos comer amanhã (sim, às vezes acontece!) É tanta coisa que dói. 

E, hoje, com a incerteza provocada pela pandemia, agrava. Meses sem ver ou abraçar amigos, sem sair pra lazer, somente pra trabalho. O medo de trazer a doença pra minha filha que espera meu neto... Sem poder sequer imaginar o futuro. Ou se estaremos ali, logo adiante... 

Preciso ocupar minha mente, mas não estou dando conta nem do que tenho para fazer e isso agrava a ansiedade, que agrava a depressão e, enfim, já nem sei mais o que é melhor. Ou menos pior. Vou levando... Desistindo de alguns projetos aqui. Planejando outros ali... Que nem sei se vou por em prática... Mas, né, a gente vai tentando. 

Vou agradecendo a quem se preocupa, a quem me estende a mão, minha mãe, meu irmão, minha filha, alguns amigos que conseguem - ainda - ler meus sinais e me segurar pra que não me perca de mim mesma. 

Eu tô tentando, juro que tô. Mais por vocês que por mim. Mas de noite, no travesseiro, ou no banho, a batalha é só minha. E tenho sido forte! Vocês se orgulhariam! Mas agora, que o Rivotril bateu bonito, vou dormir, porque, acreditem, é o único momento em que minha mente tão barulhenta encontra paz. Já chorei o bastante por hoje. Amanhã tem mais. E vamos indo, um dia depois do outro. 

Desculpem os lamentos, sei que quem tem coração também tá fodido da cabeça. Não estamos sozinhos, teoricamente. Praticamente, estamos. Fodidos e sozinhos. E o clonazepan é um baita companheiro! Acreditem! Cada um com sua droga... 


sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O tempo

 O tempo tem me atravessado, vem em ondas e beija meus pés, me transforma a cada novo dia. Hoje não sou a mesma de ontem e amanhã certamente não serei a mesma de hoje. Essa transformação se reflete no espelho, no rosto que perde, aos poucos, o brilho da juventude, e vai ganhando sabedoria, a cada sinal, a cada fio de prata que surge em meus cabelos...

O tempo, às vezes manso como a brisa, às vezes tempestuoso, confuso, vem em ondas e lambe meus pés, tal e qual a água do mar, me fazendo sentir na pele - hj não mais tão viçosa como outrora - o frio do inverno ou aquele frescor necessário nas tardes quentes de verão... O tempo me invade... Me concede... Me priva... 

O tempo, companheiro fiel desde que nasci, caminha ao meu lado junto com a Morte. O tempo e a Morte são amigos de longa data. Um não vive sem o outro. E, caminhando, os três, ombro a ombro, vamos construindo e desconstruindo coisas na nossa passada: pontes, muros, paredes, corações... 

O tempo, belo e fugaz, me deixa revisitar momentos remotos, nas lembranças tenras, presas em meus cabelos como laços coloridos de fita... Tem dias que volto às tardes preguiçosas de verão na casa da minha avó... As caçadas aos tatus-bola, as roupas esvoaçantes no varal erguido alto por uma taquara, as plantas trepadeiras floridas multicor. Sinto cheiros, sinto o calor do sol em meu rosto e quase, muito quase, posso abraçar novamente o corpo frágil da minha avozinha. "Só visita" - diz o sábio tempo, lembrando que ele jamais volta...

O tempo, nesses dias pandêmicos, tornou-se preguiçoso e lento. Passa a cada dia como se fossem muitos dias em um... Potencializou faltas e saudades, enquanto que em outros lugares não tão distantes encerrou sonhos e promessas. A amiga Morte tem andado ocupada... Enquanto o tempo nos faz perceber de forma dura que não somos nada além de pó de estrelas. É pra lá que voltaremos. "Por favor, não agora!" - peço eu ao tempo e à Morte. O tempo ri. A Morte observa, calada.

O tempo tem brincado comigo e com as pessoas. Nós, que sempre corremos contra o tempo no nosso dia a dia, apressados para chegar na hora, cumprir prazos, vencer metas, de repente estamos presos em dias iguais. Rotinas de cuidados e abstenções em prol de cuidar do outro. Hoje não nos vemos para que possamos estar juntos novamente amanhã. "Quem disse que estaremos?" - ri, de novo, o tempo. Não sei, mas eu gostaria de estar...

O tempo é irônico. Nos leva a lugares incomuns, nos faz perder pessoas pelos caminhos, encontrar outras e, nessas ondas que chegam e vão o tempo todo, ele corre. Nunca pára. Mesmo naqueles momentos em que gostaríamos de morar. Não! Esses momentos são os mais fugazes, são os que passam mais rápido... O tempo precisa andar, sempre. Mesmo que ande de um jeito torto e estranho, como agora, na pandemia... 

Foi o inverno mais longo da minha vida, mesmo eu podendo vivê-lo como sempre sonhei: quentinha, embaixo das cobertas, em hibernação constante. Ainda assim, as ondas do tempo bateram em mim tempestuosas, fortes, me derrubaram algumas vezes. Suas águas gélidas me fizeram tremer de frio. E eu odeio frio. Ainda assim, olhei pra Morte e clamei, com carinho: "Não, agora não!" 

O tempo tem invadido tudo. O contar de minutos das aulas, das lives... A hora do médico, as horas de comer e dormir, hoje tão avessas ao usual. Não temos mais as horas, dias, semanas como conhecemos... É tudo um emaranhado... Emaranhado de sentires e de saudades. Emaranhado de sonhos... Saudades do "normal"... Mas, e o que é o normal? Pergunto-me o tempo todo. Eu, que vivia na rua trabalhando, que quando reparei, vi meus filhos crescidos, hoje, com todo tempo do mundo, vivo presa em trabalhos virtuais, grupos de Whatsapp e tenho um medo enorme de me perder e não ver meu neto crescer...

O novo normal é o tempo brincando com a gente, mostrando que não adianta ter pressa e que cada coisa tem seu próprio tempo: tempo de chegar, tempo de florescer, tempo de ir... Nossa urgência nada significa hoje. Estamos presos, sem poder abraçar nossos amigos e abraçando nossos familiares com medo... A vacina? No tempo certo. Enquanto isso, vamos vivendo... Entendendo a grande fucking dádiva que é estar vivo. Sonhando em poder sair pra dançar e tomar banho de cachoeira de novo. Aprendendo a valorizar cada momento... Até porque nunca saberemos quando será o último. Ou quanto tempo demoraremos para viver aquilo outra vez. Obrigada, tempo, eu finalmente entendi!