quinta-feira, 3 de dezembro de 2020
Tornar-se mãe!
quarta-feira, 11 de novembro de 2020
Outras moradas...
Fazem dias que fizemos deste novo lugar nossa morada. Eu não esperava. Ninguém esperava. A gravidez da Ju vinha bem. A Ju sempre foi mais forte que eu. Estava ativa, saudável, estávamos fazendo planos... Chá de fraldas, book que ganhou de uma amiga minha... Enfim...
De repente, um mal estar nos trouxe aqui e aqui estamos sem data para sair. Não tem como eu não me lembrar, automaticamente, das tantas vezes em que estivemos, eu e ela, nos mais diversos hospitais de Porto Alegre, numa peregrinação incansável, exames e mais exames, buscando a causa (ou a cura?) da surdez. Outras tantas em que a asma, a pneumonia, alergias diversas me fizeram questionar inúmeras vezes a existência de uma divindade...
Fizemos, com nossos olhares sempre cúmplices, antes mesmo de nos comunicarmos, de muitos "não lares", nossos lares. Longe de casa, só tínhamos uma à outra. E ali foi se construindo uma relação que vai, até hoje, muito além da maternidade. Uma relação forjada na dor, no sofrimento, mas também num laço fraterno difícil de definir às pessoas que não convivem com uma deficiência.
Foram muitos dias fora de casa, inclusive quando iniciamos o processo de escolarização. A escola especial era em outra cidade e nos obrigava a ir "de mala e cuia" pra passar a tarde lá esperando. Outros mundos que foram se revelando e se fazendo um pouco "nossos".
Júlia sempre foi uma grande guerreira, desde que veio ao mundo. Lutou pela vida dentro de mim e seguimos lutando juntas quando ela conheceu o mundo. Jamais esquecerei os olhos de jabuticaba me fitando na maca ao lado naquela manhã fria... Apgar 2, passou ao 8. Ela queria viver. E eu a queria tanto!
Hoje estamos aqui nesse lugar que não sabemos por quanto tempo será nossa morada também lutando pela vida. Mas a minha certeza de que o Nicolas é tão forte quanto nós duas e voltaremos ao nosso lar ainda mais unidos é o que me faz esperançar todos os dias.
Eu sou a única pessoa que pode fazer outras moradas com ela, e isso às vezes é um privilégio e às vezes é um peso. Sou a única pessoa da família que se comunica plenamente com ela. Antes porque era mãe, a linguagem era umbilical. Hoje porque sou a única que aprendeu a língua dela. Como eu sempre disse, nunca coloquei a responsabilidade em ninguém. Eu assumi e assumo. Mas às vezes é triste. Mais pra ela que pra mim...
Ontem eu a vi frágil. Chorou pedindo pra ir pra casa. Eu fico destruída por dentro. Mas tudo isso é parte do que vamos sendo. As lutas, muitas lutas... As vitórias, as derrotas... Hoje esperançamos, as duas, voltarmos ao nosso castelo. Mas, se não der, não importa, estamos juntas e fazemos ninhos em outros lugares, porque lar é onde o amor está.
domingo, 1 de novembro de 2020
Um novo tipo de solidão
Gosto de fechar os olhos nos dias de vento e deixar o sol brincar de caleidoscópio com o balanço das folhas das árvores. De olhos fechados, "vejo" o jogo de luz e sombras incessante que rapidamente me remetem aos dias de verão da minha infância...
Hoje o vento está frio, mas o vento morno do verão me traz de volta cheiros e sensações (às vezes não tão boas). Acho que amo o verão por isso. Por esses momentos que só dias solares proporcionam...
Eu, apesar de ter muitos primos que também iam na casa da minha avó, sempre fui muito sozinha (não sou daqui, lembram?) e, na vida adulta às vezes esse sentimento de solidão fica diferente.
Recentemente abri mão de relações sem afeto e sem futuro. Sei que foi uma escolha correta e não questiono isso. Mas a falta da presença virtual dessas pessoas às vezes ainda dói. É um novo tipo de solidão.
O advento das redes sociais se fortaleceu diante da pandemia e, muitas vezes, nos proporciona estarmos próximos de quem está distante. Mas, para uma pessoa ansiosa como eu, é uma eterna espera. Uma expectativa doida de que alguém tenha interagido. Aí o lance de não desligar nunca, estar sempre cuidando pra ver se tem alguma mensagem e a tristeza de saber que nenhuma mensagem será de nenhuma dessas pessoas...
A gente demora a acostumar com as ausências. Demora mais ainda quando a impossibilidade é dada pela vida. Não foi escolha nossa, mas teve que ser. Melhor doer agora do que deixar destruir tudo pra ter que reconstruir depois.
Então, quando fecho os olhos numa tarde de domingo, curtindo o farfalhar das folhas nas sombras dos meus olhos fechados, é paz ou solidão? Um pouco dos dois, eu diria... E tá tudo bem! Não vai doer pra sempre. Nunca dói pra sempre!
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
Meu lugar não é aqui
Tenho pensado muito sobre o tempo... Escrevi sobre ele outro dia e o quanto tem me atravessado nestes dias em que tudo parece parado, em que os dias parecem todos iguais...
Outro dia li um texto que dizia que o tempo não passa, afinal, ele é eterno. Nós é que passamos por ele. Faz sentido. O tempo sempre esteve e sempre estará aqui. Nós não. Um dia voltaremos pra casa, como costumo dizer...
Biologicamente, nossas células já iniciam o processo de envelhecimento desde o momento em que nascemos. É a boa e velha pergunta: "cada dia que passa, desde então, é um dia a mais ou um dia a menos?"
Eu, autêntica aquariana, desde criança, rebelde, do contra, com certa inteligência acima da média, comecei a perceber que, não importava o que eu fizesse, eu simplesmente não me encaixava... Eu era literalmente "o pino redondo nos buracos quadrados"...
Lugar nenhum no mundo me acolhia... Nem minha casa, nem a escola, nem a casa da minha vó, embora lá os verões tenham sido mágicos na minha infância...
Essa sensação perdurou durante toda a adolescência e, com ela, uma vontade doida de voltar pra casa. Na vida adulta, às vezes sinto que se agravou esse sentimento.
Acabei comprando muitas brigas pra tornar esse mundo mais "habitável", não só pra mim. Levantei bandeiras da inclusão, da justiça social, da proteção animal. Encontrei nessas lutas uma razão para, pelo menos tentar, tornar o mundo o lugar acolhedor que sempre buscara...
Mas a questão é que não sou mesmo daqui. Isso às vezes me alivia e outras vezes me assusta. Alivia porque vejo que não estou caminhando junto a essa parcela da sociedade doente e que adoece os outros. Assusta porque, se não é aqui minha casa, e de tantas pessoas que andam comigo na contramão do mundo, pra onde iremos? Onde estaremos a salvo?
A consciência de que nada é, tudo está, porque o tempo não nos atravessa, nós é que o atravessamos faz com que às vezes eu me sinta tão só... A consciência da finitude de todas as coisas ou, como diria o Dom Juan, de Castaneda, o que diferencia o guerreiro de um homem comum é a consciência de sua morte.
Vivemos tempos estranhos. Não, não sou daqui. Muita gente não é. E muita gente tem voltado pra casa nesses dias tristes. Eu, hoje, quero ficar mais um pouco nesse lugar estranho porque o que se aponta, logo ali, na frente, é um futuro cheio de vida, cor, ancestralidade. Quero viver pra ver isso. Sentir. Sorrir e chorar. Depois, estarei pronta pra voltar pra casa.
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Clonazepan 2mg
Estou em terapia já faz mais de ano. Aliás, voltei a ela, depois de anos me virando como dava... Um remédio aqui, um fitoterápico ali, chá, ritual, simpatia e, de repente, percebi que não ia conseguir sozinha - de novo.
Mas comecei a terapia talvez meio tarde e as crises já estavam intensas demais e a dor, a velha e conhecida dor, não esperou a cura, teve urgência em ir embora...
Daí foi um pulo pra mais uma tentativa de "voltar pra casa"... É incrível que toda vez que tentei o suicídio, me lembrei das dores antigas, além das novas...
A Carina criança, abusada, esperando pelo pai na grande janela, as perninhas balançando pra fora, o tempo, o pai que não vinha, a desilusão... A Carina adolescente, que ñ tinha lugar no mundo pra ela. Melhor aluna. Pior pessoa. Habilidades na escrita, no desenho, na solidão...
Aí, nesses momentos, sempre almejava o glamour dos pulsos cortados, o sangue, a dor punjente em quem outrora me machucou. Mas tudo que tive foi o veneno, o remédio, o vômito e a volta vergonhosa a esse mundo que não queria mais ficar.
Eu queria não ter de assumir fracassos. Tão inteligente, desde pequena, tão talentosa, mas incapaz de construir algo que fosse concreto: seja relacionamento ou patrimônio... Ir embora é muito mais difícil que ficar. Mesmo que ficar signifique olhar no espelho todos os dias e sentir-se insignificante.
E tentei de tudo pra me sentir mais gente: emagrecer, academia, dietas e chás milagrosos, pensamento positivo, como todo mundo fala, ocupar minha vida com horas intermináveis de trabalho. Nada, absolutamente nada preencheu o vazio.
Tenho amigos, filhos, uma parte da minha família que me é essencial e importante, então o que acontece? Nunca soube explicar. Desde os 16 anos fazendo terapia, tomando remédios, tentando me enquadrar num mundo que cada vez mais se distancia daquilo que acredito...
E, acreditem, o faço por vocês. Para não ter que ver olhares decepcionados me perguntando: "nosso amor por ti não basta?" Mas não é sobre amor. É sobre dor. E às vezes é tanta dor... É a falta de grana, é o trabalho triplicado pra não ter adquirido quase nada, é a crise com o filho, são as contas não pagas, é o não saber o que vamos comer amanhã (sim, às vezes acontece!) É tanta coisa que dói.
E, hoje, com a incerteza provocada pela pandemia, agrava. Meses sem ver ou abraçar amigos, sem sair pra lazer, somente pra trabalho. O medo de trazer a doença pra minha filha que espera meu neto... Sem poder sequer imaginar o futuro. Ou se estaremos ali, logo adiante...
Preciso ocupar minha mente, mas não estou dando conta nem do que tenho para fazer e isso agrava a ansiedade, que agrava a depressão e, enfim, já nem sei mais o que é melhor. Ou menos pior. Vou levando... Desistindo de alguns projetos aqui. Planejando outros ali... Que nem sei se vou por em prática... Mas, né, a gente vai tentando.
Vou agradecendo a quem se preocupa, a quem me estende a mão, minha mãe, meu irmão, minha filha, alguns amigos que conseguem - ainda - ler meus sinais e me segurar pra que não me perca de mim mesma.
Eu tô tentando, juro que tô. Mais por vocês que por mim. Mas de noite, no travesseiro, ou no banho, a batalha é só minha. E tenho sido forte! Vocês se orgulhariam! Mas agora, que o Rivotril bateu bonito, vou dormir, porque, acreditem, é o único momento em que minha mente tão barulhenta encontra paz. Já chorei o bastante por hoje. Amanhã tem mais. E vamos indo, um dia depois do outro.
Desculpem os lamentos, sei que quem tem coração também tá fodido da cabeça. Não estamos sozinhos, teoricamente. Praticamente, estamos. Fodidos e sozinhos. E o clonazepan é um baita companheiro! Acreditem! Cada um com sua droga...
sexta-feira, 2 de outubro de 2020
O tempo
O tempo tem me atravessado, vem em ondas e beija meus pés, me transforma a cada novo dia. Hoje não sou a mesma de ontem e amanhã certamente não serei a mesma de hoje. Essa transformação se reflete no espelho, no rosto que perde, aos poucos, o brilho da juventude, e vai ganhando sabedoria, a cada sinal, a cada fio de prata que surge em meus cabelos...
O tempo, às vezes manso como a brisa, às vezes tempestuoso, confuso, vem em ondas e lambe meus pés, tal e qual a água do mar, me fazendo sentir na pele - hj não mais tão viçosa como outrora - o frio do inverno ou aquele frescor necessário nas tardes quentes de verão... O tempo me invade... Me concede... Me priva...
O tempo, companheiro fiel desde que nasci, caminha ao meu lado junto com a Morte. O tempo e a Morte são amigos de longa data. Um não vive sem o outro. E, caminhando, os três, ombro a ombro, vamos construindo e desconstruindo coisas na nossa passada: pontes, muros, paredes, corações...
O tempo, belo e fugaz, me deixa revisitar momentos remotos, nas lembranças tenras, presas em meus cabelos como laços coloridos de fita... Tem dias que volto às tardes preguiçosas de verão na casa da minha avó... As caçadas aos tatus-bola, as roupas esvoaçantes no varal erguido alto por uma taquara, as plantas trepadeiras floridas multicor. Sinto cheiros, sinto o calor do sol em meu rosto e quase, muito quase, posso abraçar novamente o corpo frágil da minha avozinha. "Só visita" - diz o sábio tempo, lembrando que ele jamais volta...
O tempo, nesses dias pandêmicos, tornou-se preguiçoso e lento. Passa a cada dia como se fossem muitos dias em um... Potencializou faltas e saudades, enquanto que em outros lugares não tão distantes encerrou sonhos e promessas. A amiga Morte tem andado ocupada... Enquanto o tempo nos faz perceber de forma dura que não somos nada além de pó de estrelas. É pra lá que voltaremos. "Por favor, não agora!" - peço eu ao tempo e à Morte. O tempo ri. A Morte observa, calada.
O tempo tem brincado comigo e com as pessoas. Nós, que sempre corremos contra o tempo no nosso dia a dia, apressados para chegar na hora, cumprir prazos, vencer metas, de repente estamos presos em dias iguais. Rotinas de cuidados e abstenções em prol de cuidar do outro. Hoje não nos vemos para que possamos estar juntos novamente amanhã. "Quem disse que estaremos?" - ri, de novo, o tempo. Não sei, mas eu gostaria de estar...
O tempo é irônico. Nos leva a lugares incomuns, nos faz perder pessoas pelos caminhos, encontrar outras e, nessas ondas que chegam e vão o tempo todo, ele corre. Nunca pára. Mesmo naqueles momentos em que gostaríamos de morar. Não! Esses momentos são os mais fugazes, são os que passam mais rápido... O tempo precisa andar, sempre. Mesmo que ande de um jeito torto e estranho, como agora, na pandemia...
Foi o inverno mais longo da minha vida, mesmo eu podendo vivê-lo como sempre sonhei: quentinha, embaixo das cobertas, em hibernação constante. Ainda assim, as ondas do tempo bateram em mim tempestuosas, fortes, me derrubaram algumas vezes. Suas águas gélidas me fizeram tremer de frio. E eu odeio frio. Ainda assim, olhei pra Morte e clamei, com carinho: "Não, agora não!"
O tempo tem invadido tudo. O contar de minutos das aulas, das lives... A hora do médico, as horas de comer e dormir, hoje tão avessas ao usual. Não temos mais as horas, dias, semanas como conhecemos... É tudo um emaranhado... Emaranhado de sentires e de saudades. Emaranhado de sonhos... Saudades do "normal"... Mas, e o que é o normal? Pergunto-me o tempo todo. Eu, que vivia na rua trabalhando, que quando reparei, vi meus filhos crescidos, hoje, com todo tempo do mundo, vivo presa em trabalhos virtuais, grupos de Whatsapp e tenho um medo enorme de me perder e não ver meu neto crescer...
O novo normal é o tempo brincando com a gente, mostrando que não adianta ter pressa e que cada coisa tem seu próprio tempo: tempo de chegar, tempo de florescer, tempo de ir... Nossa urgência nada significa hoje. Estamos presos, sem poder abraçar nossos amigos e abraçando nossos familiares com medo... A vacina? No tempo certo. Enquanto isso, vamos vivendo... Entendendo a grande fucking dádiva que é estar vivo. Sonhando em poder sair pra dançar e tomar banho de cachoeira de novo. Aprendendo a valorizar cada momento... Até porque nunca saberemos quando será o último. Ou quanto tempo demoraremos para viver aquilo outra vez. Obrigada, tempo, eu finalmente entendi!
sexta-feira, 22 de maio de 2020
Onde são os lugares dos "não lugares" que a escola produz?
Começo este texto com dor no coração. Trabalho há oito anos com inclusão de pessoas com deficiência no âmbito escolar e, justamente por isso, não é fácil relatar o que tenho para relatar sobre este delicado tema. A questão é que a inclusão ainda não se estabeleceu e não se sabe se um dia realmente se estabelecerá. Desde a Constituição Federal de 1988, que determina “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art.3º inciso IV). Define, ainda, no artigo 205, a educação como um direito de todos, garantindo o pleno desenvolvimento da pessoa, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. No artigo 206, inciso I, estabelece a “igualdade de condições de acesso e permanência na escola” como um dos princípios para o ensino e garante, como dever do Estado, a oferta do atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (art. 208), ainda não temos os direitos das pessoas com deficiência garantidos. Desde lá, vieram mais inúmeras leis, decretos, notas técnicas que sempre tiveram como principal objetivo amparar e garantir acessibilidade plena a essas pessoas, a exemplo temos a Declaração Mundial de Educação para todos, de 1990, a Declaração de Salamanca e a Política Nacional da Educação Especial, ambas de 1994, dentre tantas outras que foram complementando-se entre si.
É importante falar da legislação, justamente para mostrar que não falamos de algo novo, estamos em eterno processo de construção, desde então, sem, de fato, conseguirmos dar algum passo adiante. Lembro-me bem que nas aulas da faculdade: a professora Maura Corcini Lopes dizia que "a inclusão não é lugar de chegada", no sentido de que o processo de transformações e mudanças provocados pelos alunos com deficiência nas escolas é muito mais importante do que o resultado final. Aliás, qual seria o resultado final? Que lugares são estes que tanto almejamos chegar e que, apesar de tanto caminharmos, nunca chegamos? A inclusão não é o lugar, mas a escola o é. Lugar de tantos universos que dividem espaços, sentires e aprendizagens. A escola, o "lugar de todos", tem sido de todos mesmo?
A provocação que tem por objetivo este artigo é justamente essa: o que estamos fazendo para que a escola se torne, minimamente, o espaço democrático e acolhedor que queremos? Nossas atitudes, frente ao novo, frente ao que desacomoda, ao que nos tira de nosso lugar de conforto, é positiva, é pró ativa, nos faz pessoas melhores? Tenho visto e ouvido tantas coisas nas escolas em que tenho passado, seja para trabalhar, seja para palestrar, que me mostram que os responsáveis por promover a acessibilidade plena e permanência dos alunos, considerados "diferentes" na escola, são as mesmas pessoas que vão contribuindo para a construção de lacunas, lugares vazios, onde dificilmente estes alunos se encontram ou encontram meios de preencher esses espaços.
O lugar de onde falo diz muito. Sou professora, formada em pedagogia, com habilitação em educação especial, fiz especialização em AEE e uma pós graduação não concluída em neuropsicopedagogia (faltou a última disciplina, abandonei o curso por decepção mesmo, ao perceber que eu sabia mais do que muitos dos professores que estavam ali me ensinando e que todo o material didático, ou pelo menos parte dele, eram retirados da Wikipedia). Mas, ainda mais importante que minha caminhada acadêmica, é minha caminhada como educadora de uma criança surda. Minha filha, Júlia, hoje tem 21, quase 22 anos, inicia sua caminhada acadêmica agora e, com ela e por ela, que minhas maiores aprendizagens foram realizadas. Essa caminhada me (re)significou e (re)significa muito mais do que qualquer teoria que tenha passado por mim. Porque essa caminhada faz de mim humana, antes de ser profissional ou qualquer outra coisa. E, como dizia Carl Jung, "conheça todas a teorias, todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja, antes de mais nada, outra alma humana".
Agora é possível fazer um apanhado de tudo o que estou tentando dizer. Até hoje, tamanhos enfrentamentos e embates que tenho nas formações que dou para professores, sempre tive que me apresentar como mãe de pessoa com deficiência antes de falar do meu currículo lattes. As resistências frente ao novo, frente ao desconhecido, às vezes são cruéis, sistemáticas, estão impregnadas em um sistema que já não investe o suficiente em educação, que dirá nos educadores. As escolas permanecem num eterno "despreparo", porque, muitas vezes, é mais fácil justificar o erro do que deixar de cometê-lo.
E a inclusão, a legislação, como bem tenho bradado por onde vou, não irá retroceder. E eles estão chegando em nossos espaços, pessoas com deficiências sensoriais, pessoas autistas, com altas habilidades (que por mais incrível que possa parecer, estas últimas também não são bem vistas dentro das instituições de ensino). Continuarão chegando, mesmo que nunca estejamos preparados para recebê-los. Essa é a nossa realidade atual. Não vai mudar. Então, pergunto novamente, quanto mais resistiremos? Eu complementaria a frase dita pela cantora Pitty, que brilhantemente disse, em um programa de tv: "Pois eu não volto pra cozinha, nem o negro pra senzala e nem o gay pro armário, o choro é livre e nós também." As pessoas com deficiência também não retornarão às clínicas.
Hoje, com um governo de retrocessos no Brasil, vemos, desde o início deste mandato, ou antes mesmo do início dele, a volta do eugenismo, onde há uma falsa crença de que as minorias devem curvar-se às maiorias, ou sumirem (dito pelo próprio presidente, então candidato, em 2018), que certamente deu respaldo para o começo de uma retirada de direitos sem precedentes, depois de tantas movimentações e conquistas das pessoas com deficiência e comunidades envolvidas. Há um silenciamento da luta, sendo que ainda há tanto para ser conquistado.
Então, se eles chegam a nós todos os anos e sabemos que, mesmo com retirada ou não de direitos, o lugar destas pessoas por certo é onde elas quiserem, porque insistimos em dizer que a escola não é o lugar delas? Como podemos lutar por democracia e justiça quando impedimos pessoas de estarem de forma plena em determinados lugares e de exercerem seus direitos? Negamos a elas o acesso ao conhecimento alegando que não há preparo, que não há estrutura e eu fico aqui me perguntando até quando essas coisas irão nos paralisar e fazer com que a gente siga esperando que a solução (?) venha do governo, do outro?
Enquanto isso, nossos alunos com deficiência estão lá, sentados em suas cadeiras, invisíveis. E nós, com nossa não ação, vamos construindo os não lugares, as impossibilidades e as incertezas. Mesmo sem querer, vamos dizendo ao outro que é improvável, impossível, que ele - o outro - é incapaz. E nessas cadeiras vazias aos nossos olhares estão sujeitos que vão se vendo desta forma, anulados em suas potencialidades, incertos de suas identidades. Estamos cometendo um crime! E, mesmo construindo os não lugares, somos incapazes de dizer, então, quais são os lugares destas pessoas, afinal? E, não, elas não voltarão para as clínicas!