Hoje venho fazer uma reflexão... sobre as minhas vivências em relação à deficiência de minha filha... Sei que já escrevi algumas vezes sobre isso, todos sabem, e não é segredo para ninguém, que, depois do choque inicial da descoberta da surdez, eu parti para a luta... Escolhi caminhos difíceis e muitas lutas foram travadas desde então, luta pela educação especial, que sempre acreditei tanto, luta pelo uso e reconhecimento da língua de sinais, luta pela aceitação, pelo fim do discurso: "ahhh, que pena, mas ela é tão linda..."
A princípio, para deixar claro, não me arrependo de nada que sacrifiquei por ela, nada mesmo, inclusive faria tudo de novo. Até porque acredito que ser mãe é isso mesmo, abdicar dos nossos sonhos em prol dos sonhos dos outros, que são extensão do nosso ser...
Mas os questionamentos da Júlia acerca da deficiência dela sempre foram muito foda. Mesmo com toda a aceitação que ela teve, mesmo com a minha fluência na língua materna dela, às vezes me parece que nada é o suficiente. Vou tentar fazer um breve resumo dos desafios que a Júlia tem me imposto, desde que era muito pequena...
Júlia entrou na escola aos 3 anos e meio, graças aos deuses e a uma força sobrenatural que eu sequer sabia que tinha. Foi estimulada precocemente e alfabetizou-se na hora certa. Enfim, cognitivamente, sempre foi muito boa, eu diria que acima da média até... mas, passada a fase de perguntar as cores de todas as coisas (que acho que nós, ouvintes, vivenciamos com a fase dos por quês), um dia ela chega da escola, muito pequena ainda, com quase seis anos, e me pergunta algo que, em um primeiro momento, me paralisou. "Mãe, o que adianta eu orar em Libras, se Deus é ouvinte?" O chão saiu dos meus pés. Eis mais um estigma trazido pela igreja católica e que eu deveria quebrar com apenas uma resposta. A resposta me veio num sopro divino e acredito muito que tenha sido convincente: "Ué, mas nos EUA não falam inglês, aqui no Brasil, português, na Alemanha, alemão, e assim em cada país uma língua? Tu achas que Deus não entende todas? Então ele sabe língua de sinais também." Os olhinhos dela brilharam. Sim, ela se convenceu. Missão cumprida e aquele frio na barriga que me acompanhou por dias ainda...
Depois, lá pelos dez anos, ela queria saber por que somente ela era surda na família. Na época, tentei respostas de todos os tipos: "A família do teu pai é muito antiga, os pais dele tem a idade dos meus avós, não conhecemos toda a família, pode ser que tenha havido algum surdo que não tenhamos conhecido.", "Tu vieste assim para que nós pudéssemos aprender contigo.", ou ainda, "Tem coisas que não se explicam, são assim, porque são." Nada convenceu. Nada. Tanto o é que até hoje ela ainda pergunta, vez ou outra, quando sofre alguma decepção (como se ser ouvinte a pouparia das decepções... não pouparia!).
Um dos meus maiores choques foi quando, aos doze, ela me pediu para fazer o implante coclear. Nada podia ser mais doloroso para mim que, já inserida na cultura surda, não podia imaginar que ela tivesse esse desejo. Já tendo me aprofundado nos estudos culturais surdos, sabia que as chances dela eram pequenas, devido a idade avançada, de voltar a ouvir de fato. Então, começamos, as duas, uma pesquisa acerca do implante, o procedimento cirúrgico, tempo de recuperação, a porcentagem de recuperação real da audição. Ela desistiu. Eu fiquei aliviada. Mas então veio um outro processo depois deste, tão cruel quanto. Começou a me questionar do por que eu não ter tentado o implante quando descobri a surdez. As chances eram maiores. Sempre respondi a esse questionamento dela dizendo que a aceitei do jeito que era. Sempre aceitei a língua de sinais. Sempre aceitei a surdez como experiência cultural e não como limitadora. Mas, me parece, ela não. E isso antes me chocava, agora me entristece profundamente.
Ontem, estava conversando com ela no messenger, pois, trabalhando 60 horas, muitas vezes é assim que me comunico com eles, acerca de possibilidades futuras. Júlia passou em dois vestibulares, mas não conseguimos bolsa de estudos e nem financiamento, ela desistiu, mais uma vez, do Jovem Aprendiz, enfim, disse para ela que ela precisa estudar para passar no ENEM e tentar uma bolsa no futuro. Coisas reais, já que ela fantasia muito ainda sobre as coisas da vida. Disse que empregos ditos "normais" não são fáceis e que, mesmo não convivendo com outros surdos, ela não se veria livre de situações provocadas por fofocas e mal entendidos. A resposta dela veio como um raio. Partiu-me ao meio. "Meus ouvidos estão mortos! Eu não ouço as pessoas falarem de mim." Meus ouvidos estão mortos... Isso foi pior do que qualquer outra coisa que ela já tenha me questionado.
Não sei mensurar como me sinto diante dessas reflexões dela. A solidão que ela sente desde pequena e que eu nunca aprendi a sanar. Hoje entendo que esses sentimentos são externos, são coisas que ela talvez não sentisse se o mundo não fosse tão filho da puta. Se as pessoas não fossem filhas da puta. Fala-se muito em acessibilidade, mas a verdade é que o mundo continua excluindo, julgando, rotulando as pessoas diferentes. Eu aprendi a lidar com isso, ela não.
Se houvessem mais pessoas dentro da família, dentro das instituições, mais pessoas no mundo que usassem com normalidade a língua de sinais, talvez ela não se sentisse tão sozinha. Se houvessem mais processos de conscientização e humanização dentro da comunidade surda, talvez ela tivesse mais amigos. Se houvesse mais investimento em educação, em treinamento de pessoas que atuam na área da surdez, talvez ela se sentisse mais segura para fazer o ENEM, mais segura e mais capaz.
A verdade é que existe toda uma legislação, todo um aparato para garantir o uso e manutenção da língua de sinais, mas, na prática, a coisa não acontece. O currículo da escola especial é uma merda. A inclusão não funciona. E eles ficam ali, às margens de uma sociedade hipócrita que acha que abriu uma concessão porque aprendeu a falar "oi" em sinais. Perdi as contas de quantas e quantas vezes me perguntaram: "Mas ela não fala?" Fala! Fala em sinais. E como fala, mãos, braços, cotovelos. Expressões faciais e corporais que jamais disfarça. Uma beleza de língua. Sim, língua. Não linguagem e tampouco gestos. Mas a ignorância dessa população que tem mestrado, doutorado, mas não aprende que não é surdo-mudo, é só surdo. Não aprende que não é linguagem, é língua. Não aprende que ainda estamos longe da igualdade de oportunidades. Muito longe! Essa ignorância não tem limites!
E, enquanto isso, eu e ela vamos nos (des)construindo em nossos conflitos, eu sigo lutando em prol dessa bandeira tão difícil que é a inclusão e ela, ela pensa que os ouvidos dela estão mortos, mas não estão. Eu ainda não encontrei argumentos para provar a ela que não estão, mas vou encontrar. Só queria que ela acreditasse mais em si mesma. Que ela se visse com os meus olhos por um instante apenas. Daí ela conseguiria ver a força que tem e que não é à toa, ter nascido de Leão com ascendente em Leão! Não é à toa!
A princípio, para deixar claro, não me arrependo de nada que sacrifiquei por ela, nada mesmo, inclusive faria tudo de novo. Até porque acredito que ser mãe é isso mesmo, abdicar dos nossos sonhos em prol dos sonhos dos outros, que são extensão do nosso ser...
Mas os questionamentos da Júlia acerca da deficiência dela sempre foram muito foda. Mesmo com toda a aceitação que ela teve, mesmo com a minha fluência na língua materna dela, às vezes me parece que nada é o suficiente. Vou tentar fazer um breve resumo dos desafios que a Júlia tem me imposto, desde que era muito pequena...
Júlia entrou na escola aos 3 anos e meio, graças aos deuses e a uma força sobrenatural que eu sequer sabia que tinha. Foi estimulada precocemente e alfabetizou-se na hora certa. Enfim, cognitivamente, sempre foi muito boa, eu diria que acima da média até... mas, passada a fase de perguntar as cores de todas as coisas (que acho que nós, ouvintes, vivenciamos com a fase dos por quês), um dia ela chega da escola, muito pequena ainda, com quase seis anos, e me pergunta algo que, em um primeiro momento, me paralisou. "Mãe, o que adianta eu orar em Libras, se Deus é ouvinte?" O chão saiu dos meus pés. Eis mais um estigma trazido pela igreja católica e que eu deveria quebrar com apenas uma resposta. A resposta me veio num sopro divino e acredito muito que tenha sido convincente: "Ué, mas nos EUA não falam inglês, aqui no Brasil, português, na Alemanha, alemão, e assim em cada país uma língua? Tu achas que Deus não entende todas? Então ele sabe língua de sinais também." Os olhinhos dela brilharam. Sim, ela se convenceu. Missão cumprida e aquele frio na barriga que me acompanhou por dias ainda...
Depois, lá pelos dez anos, ela queria saber por que somente ela era surda na família. Na época, tentei respostas de todos os tipos: "A família do teu pai é muito antiga, os pais dele tem a idade dos meus avós, não conhecemos toda a família, pode ser que tenha havido algum surdo que não tenhamos conhecido.", "Tu vieste assim para que nós pudéssemos aprender contigo.", ou ainda, "Tem coisas que não se explicam, são assim, porque são." Nada convenceu. Nada. Tanto o é que até hoje ela ainda pergunta, vez ou outra, quando sofre alguma decepção (como se ser ouvinte a pouparia das decepções... não pouparia!).
Um dos meus maiores choques foi quando, aos doze, ela me pediu para fazer o implante coclear. Nada podia ser mais doloroso para mim que, já inserida na cultura surda, não podia imaginar que ela tivesse esse desejo. Já tendo me aprofundado nos estudos culturais surdos, sabia que as chances dela eram pequenas, devido a idade avançada, de voltar a ouvir de fato. Então, começamos, as duas, uma pesquisa acerca do implante, o procedimento cirúrgico, tempo de recuperação, a porcentagem de recuperação real da audição. Ela desistiu. Eu fiquei aliviada. Mas então veio um outro processo depois deste, tão cruel quanto. Começou a me questionar do por que eu não ter tentado o implante quando descobri a surdez. As chances eram maiores. Sempre respondi a esse questionamento dela dizendo que a aceitei do jeito que era. Sempre aceitei a língua de sinais. Sempre aceitei a surdez como experiência cultural e não como limitadora. Mas, me parece, ela não. E isso antes me chocava, agora me entristece profundamente.
Ontem, estava conversando com ela no messenger, pois, trabalhando 60 horas, muitas vezes é assim que me comunico com eles, acerca de possibilidades futuras. Júlia passou em dois vestibulares, mas não conseguimos bolsa de estudos e nem financiamento, ela desistiu, mais uma vez, do Jovem Aprendiz, enfim, disse para ela que ela precisa estudar para passar no ENEM e tentar uma bolsa no futuro. Coisas reais, já que ela fantasia muito ainda sobre as coisas da vida. Disse que empregos ditos "normais" não são fáceis e que, mesmo não convivendo com outros surdos, ela não se veria livre de situações provocadas por fofocas e mal entendidos. A resposta dela veio como um raio. Partiu-me ao meio. "Meus ouvidos estão mortos! Eu não ouço as pessoas falarem de mim." Meus ouvidos estão mortos... Isso foi pior do que qualquer outra coisa que ela já tenha me questionado.
Não sei mensurar como me sinto diante dessas reflexões dela. A solidão que ela sente desde pequena e que eu nunca aprendi a sanar. Hoje entendo que esses sentimentos são externos, são coisas que ela talvez não sentisse se o mundo não fosse tão filho da puta. Se as pessoas não fossem filhas da puta. Fala-se muito em acessibilidade, mas a verdade é que o mundo continua excluindo, julgando, rotulando as pessoas diferentes. Eu aprendi a lidar com isso, ela não.
Se houvessem mais pessoas dentro da família, dentro das instituições, mais pessoas no mundo que usassem com normalidade a língua de sinais, talvez ela não se sentisse tão sozinha. Se houvessem mais processos de conscientização e humanização dentro da comunidade surda, talvez ela tivesse mais amigos. Se houvesse mais investimento em educação, em treinamento de pessoas que atuam na área da surdez, talvez ela se sentisse mais segura para fazer o ENEM, mais segura e mais capaz.
A verdade é que existe toda uma legislação, todo um aparato para garantir o uso e manutenção da língua de sinais, mas, na prática, a coisa não acontece. O currículo da escola especial é uma merda. A inclusão não funciona. E eles ficam ali, às margens de uma sociedade hipócrita que acha que abriu uma concessão porque aprendeu a falar "oi" em sinais. Perdi as contas de quantas e quantas vezes me perguntaram: "Mas ela não fala?" Fala! Fala em sinais. E como fala, mãos, braços, cotovelos. Expressões faciais e corporais que jamais disfarça. Uma beleza de língua. Sim, língua. Não linguagem e tampouco gestos. Mas a ignorância dessa população que tem mestrado, doutorado, mas não aprende que não é surdo-mudo, é só surdo. Não aprende que não é linguagem, é língua. Não aprende que ainda estamos longe da igualdade de oportunidades. Muito longe! Essa ignorância não tem limites!
E, enquanto isso, eu e ela vamos nos (des)construindo em nossos conflitos, eu sigo lutando em prol dessa bandeira tão difícil que é a inclusão e ela, ela pensa que os ouvidos dela estão mortos, mas não estão. Eu ainda não encontrei argumentos para provar a ela que não estão, mas vou encontrar. Só queria que ela acreditasse mais em si mesma. Que ela se visse com os meus olhos por um instante apenas. Daí ela conseguiria ver a força que tem e que não é à toa, ter nascido de Leão com ascendente em Leão! Não é à toa!