Certa vez, li em algum lugar que "é a capacidade de comunicar-nos que nos faz humanos". Aquilo me doeu. Não apenas porque tenho uma filha surda, mas porque tenho empatia, costumo sempre fazer o movimento de me colocar no lugar do outro, em qualquer circunstância. Isso me faz diferente de muita gente. Mas, na ocasião, lembro-me de ter-me sentido daquela forma por saber - intimamente - que muitos e muitos ainda vivem às margens de qualquer possibilidade de comunicação dentro de suas casas, com suas famílias. Estariam estas pessoas fora do conceito de humanidade dado por aquele autor? Serão enquadrados, então, como animais? Fiquei extremamente chateada...
Indo mais fundo, indo além, problematizando estas questões que permeiam a surdez, não nego que a linguagem, assim como o pensamento racional, é um dos elementos que nos conferem status de seres humanos, embora nem todos nós tenhamos a capacidade real de ostentar tal titulação. Mas o que fazer quando não temos uma? Quando somos tolhidos, podados, desde a mais tenra idade, da capacidade natural de comunicar-nos? Será que as pessoas pensam nisso?
A Júlia teve sorte. Claro que poderia ter tido mais, mais pessoas poderiam ter ido atrás para comunicarem-se com ela, mas ela teve alguém que se importou, que aprendeu, correu atrás. Desde pequena ela teve acesso a todas as informações possíveis, isso fez - e fará - toda a diferença na vida dela. Mas, desde que comecei a atuar como professora, passei a me perguntar todos os dias: E os outros? Isso me inquieta, me desacomoda, me consome...
Dentro da escola, atuando como intérprete, tenho a oportunidade de dar voz a estes sujeitos. Tenho a oportunidade de ser o som, de promover as trocas, de incentivar, de comover, de sensibilizar. Por isso que amo tanto o que faço. Não pensem que encaro isso como uma missão, uma espécie de boa ação, não, está bem longe disso. Sou uma profissional, mas que, diferente de outras profissionais da minha área, tenho um olhar pedagógico sobre o meu fazer diário. Isso me confere preocupações que outras pessoas não tem. Como a de construir conhecimento, por exemplo. Torná-los cidadãos críticos, capazes de se verem para além das suas deficiências. Aliás, nem considero que surdos sejam deficientes. Eles apenas tem um modo de ver e experimentar o mundo diferentes. São seres culturais, como todos nós, que tem uma cultura diferente da nossa.
Isso, meus amigos, me tornou simplesmente diferente também, no dia a dia. Não consigo aderir à lógica do "finge que aprende que eu finjo que ensino" e tudo certo. Quero que eles saiam daqui carregando algo para suas vidas. Que possam se ver fazendo coisas maravilhosas. Sou uma "plantadora de sonhos", por assim dizer. E não posso conceber que outras pessoas que atuam todos os dias com seres humanos não se vejam da mesma forma.
Diante de tantas e tantas reclamações sobre atuações errôneas de outras profissionais de minha área, que minimizam seus esforços, que preferem nem ficar em sala de aula, ou que ficam no celular durante as aulas, me pergunto: o que estão fazendo aqui, se não acreditam no que fazem? Queria mesmo saber. E entender.
As pessoas dizem que tenho esta sensibilidade por causa da minha vivência como mãe, mas eu digo: a sensibilidade e a empatia são coisas que carregamos conosco, ou temos, ou não temos, simples assim. Não foi minha graduação e nem o meu diploma que me deram a capacidade de me colocar no lugar do outro, isso é meu, já estava em mim, não é questão de formação e sim de caráter.
Ai, percebo certas coisas que estão imbricadas em todas estas questões: como formar caráter se não temos um? Como ensinar pelo exemplo se não podemos dar este exemplo? Por isso, exatamente por isso, que a educação está em crise de identidade. Ninguém mais sabe quem faz o que... Isso é triste. Se insistirmos que valores morais não estão atrelados aos conteúdos da escola, vejo um futuro negro pela frente. Porque conviveremos com cidadãos mal formados, mal informados e desprovidos de consciência. Vejam bem: não estou tirando as responsabilidades das famílias, de forma alguma. Mas vivemos em um momento da história em que alguém terá de tomar partido. Mas também somos mal formados para trabalharmos com processos humanizatórios. E assim tudo vai se perdendo...
Tenho responsabilidades com meus alunos. E reconheço cada uma delas, cada vez que vejo seus olhares decepcionados. Tem intérprete que deveria ser presa. Tem intérprete que nem deveria ser intérprete. Assassinam sonhos todos os dias. Deixam que esses seres humanos continuem às margens dos processos de comunicação. Isso é um crime. Mas acontece todos os dias dentro das salas de aula inclusivas. Mas ninguém se responsabiliza. Porque vivemos na era do "ninguém tem culpa, mas todo mundo tem". Culpa do governo, que remunera mal e que tem critérios duvidosos na seleção dos profissionais, culpa da sociedade, culpa da comunidade escolar, culpa das famílias, culpa da igreja... E, nessa onda de culparmos todo mundo, vamos deixando que o tempo passe sem responsabilizarmos ninguém... É, a Júlia teve sorte...
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