sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Inclusão dentro da minha angústia



Eu sou mãe de uma menina surda, hoje ela está com 14 anos, mas minha caminhada e minhas lutas acerca da causa começaram há muito tempo. Fiz minha formação pensando em aprender maneiras de lidar com ela e potencializar o seu aprendizado, hoje sou pedagoga em educação especial e intérprete. Atuo também como professora de AEE de surdos. Minha filha sempre esteve dentro do ensino especial, o que, durante muito tempo, precisou do meu sacrifício para que pudesse se concretizar: levava-a até a escola e ficava a tarde toda esperando por ela, uma vez que era impossível voltar para casa. Assim sendo, o irmão dela também acabou tendo de se moldar a esta realidade, começando seus anos de escolarização em Esteio, ao lado da escola em que a Júlia estudava. Optei pela educação especial porque entendia o quanto era importante para ela estar dentre seus semelhantes, ter professores surdos que certamente serviriam de exemplo para ela, ao longo de sua vida. Ao longo da faculdade, tive como estudar a inclusão, me aprofundar neste assunto, embora jamais tenha pensado que seria uma opção para a minha filha. Muita coisa aconteceu desde então, trabalhei anos com educação ambiental e fora da minha área, até surgir um contrato para ser intérprete pelo Estado, que foi a oportunidade que tive de trabalhar com o que sempre gostei: educação de surdos.
Estou trabalhando há um ano e meio nesta área e devo dizer que hoje vejo que caminhamos lentamente rumo a um processo realmente democrático e inclusivo. Paciência histórica, precisamos de paciência histórica, me disse minha prima que também é professora. Paciência histórica para sabermos esperar o tempo necessário para que as mudanças se estabeleçam. Eu busquei ter esta paciência, mas não me abstive de lutar pelas coisas que considero certas. Difícil esperar quando as mudanças urgem também. Trabalhei durante o ano passado com um aluno que, além de surdo, tinha algumas outras deficiências, inclusive motora, um aluno que, a meu ver, simplesmente fora jogado ali. Os professores, em sua maior parte, sequer tomavam consciência da presença do aluno ali. Planejamento especializado? Lenda! Ali começou uma discussão sobre a função da intérprete dentro da sala de aula e muitas e muitas atrocidades ocorreram até a mãe deste aluno resolver retirá-lo da escola este ano. Lamentável.
Eu penso que ainda estamos nadando contra a corrente quando nos referimos à inclusão de surdos. Ainda temos muito que aprender. Vejo pessoas especialistas falando equivocadamente da educação de surdos, até porque não fazem a distinção de surdos e deficientes auditivos, o que o próprio Capovilla (2010, pág 08) diz ser uma aberração. Para mim, é óbvio que o deficiente auditivo pode se adequar à escola inclusiva sem requerer muitas adaptações ou mudanças. Mas e o surdo? O sujeito que só usa e se comunica através da Libras, onde fica nesta história? Ele dependerá única e exclusivamente da boa vontade e, principalmente, do conhecimento de suas intérpretes. E, minha gente, depender de conhecimento é uma coisa muito séria quando falamos de educação, porque a maior parte dos professores e educadores que conheço se contenta com o ensino institucionalizado e com os diplomas, ninguém se informa, ninguém segue lendo a respeito de nada. Se não tiver certificação, não há formação. E seguem as práticas arbitrárias, a falta de sensibilidade e ética e a inclusão de surdos sendo operada como se fosse qualquer outra.
Sinto-me de mãos atadas, sinto que as mudanças pelas quais lutei ao longo deste ano, seguirão utópicas, pois o discurso que impera é o da facilitação do trabalho. Intérprete só quer a neutralidade porque a neutralidade não requer trabalho e nem estudo. Vou, interpreto a aula e vou embora, tendo cumprido o meu horário. O surdo que se vire no restante do tempo. Neutralidade não existe na educação, insisto em dizer. E, como Freire mesmo fala, por trás da neutralidade também há uma intencionalidade. A partir de outras desistências que ocorreram neste ano, sinto o peso do fracasso em minhas costas. Não há como não sentir! Muita coisa tem de ser debatida e confrontada. Urge que a função do intérprete nas escolas seja homologada e que sejam pensados em deveres destes profissionais através de pesquisas e de muita contestação, urge que o surdo seja ouvido, que ele mesmo fale sobre como quer que ocorra seu processo educativo, urge que a escola inclusiva coloque a Libras em seu currículo – não somente no Magistério – para que a inclusão passe a tornar-se uma realidade.
Aprendi que incluir não é apenas “colocar para dentro”, que incluir requer mudanças significativas, afinal, inclusão/exclusão são duas das faces de uma mesma moeda. Não podemos jamais nos esquecer disto. A partir do momento que eu olho para meu aluno surdo – e estou falando de surdo mesmo, não deficiente auditivo – e digo que ele que tem que se adaptar ao mundo majoritariamente ouvinte, estou esquecendo de que este sujeito é histórico e cultural, de que este sujeito constituiu uma identidade diferente da minha e que, portanto, deverá ser atendido e respeitado nas suas especificidades. Mas, tudo isso, todo este discurso, faz parte dos jogos de poder que permeiam as instituições, enfim, há uma intenção bem clara nele, ela traz vantagens a quem o promove e uma destas vantagens é não ter de “desarrumar” a casa para receber a diferença. Visão integracionista da inclusão, de que é o sujeito que se adapta ao meio. Esta visão nem existe mais, uma vez que a própria Declaração de Salamanca já diz que o surdo, devido à sua particularidade lingüística, seria melhor atendido nas escolas e classes especiais que visam a educação bilíngüe.
E a gente vai cansando deste tipo de gente e deste tipo de discurso. Não estou dizendo que não acredito na inclusão. Longe disso. Mas considero que mudanças devem ser feitas, as pessoas devem parar de entender a surdez como um déficit, uma deficiência, uma falta... O surdo é um sujeito que está dentro de uma cultura diferente da nossa. Da mesma forma que os índios, os judeus e os muçulmanos. Portanto, a inclusão deve ser pensada a partir disso: como acolher esta diferença em minha sala de aula?  Chega de pensarmos em meios de reabilitação, o surdo não precisa ser reabilitado, ele precisa ser entendido! Então, que a luta pelo respeito à língua siga adiante, que o ensino bilíngüe preveja um futuro para estas crianças e adolescentes e que a cultura surda permaneça!




sábado, 20 de outubro de 2012

Descaso humanitário


Estava há cerca de dois meses para escrever sobre este assunto, mas, hoje, tendo acontecido novamente, percebi que não dormiria bem se não escrevesse antes de deitar... A questão é que quando ando de trem posso sentir o quanto as pessoas andam duras... Não podem perceber as pequenas magias que as cercam... A questão que trago hoje muito provavelmente já permeou muitas realidades, pelo menos daqueles que já andaram de trem alguma vez na vida...
Eu vou a Porto Alegre uma vez por semana por conta de uma pós graduação que faço por lá, então é certo que neste dia estarei no metrô, isso sem contar as outras vezes que vou a passeio em finais de semana, é um meio seguro, prático e ágil de ir para lá, algumas pessoas inclusive deixam seus carros em estacionamentos para evitarem o trânsito caótico da cidade. Enfim, quem utiliza o trem para seu deslocamento sabe que muitas e muitas vezes encontrará aqueles famosos personagens que estão sempre por ali: pedintes, vendedores e afins. Então, a prática de todos em geral é sempre a mesma: eles te dão um papelzinho com um breve histórico que explica o por que de estarem ali... Quando são surdos, dizem que são surdos e normalmente o que vendem vem junto com o alfabeto em Libras, que certamente irá parar em alguma lixeira por aí...
Então, o que venho relatar hoje, são duas experiências que tive com alguns destes personagens típicos, uma há uns dois meses e outra nesta última semana... 
Eu estava voltando, depois da aula, umas dez e pouco da noite, quando entrou no vagão em que eu estava um menino - que depois percebi estar acompanhado por outro menino mais jovem ainda que ele - carregando uma sacola visivelmente pesada demais para ele... Ele se ajeitou em um canto e tirou da sacola uma caixa de balas de goma, dentre outras que ainda ficaram na sacola. Ele passou de pessoa em pessoa oferecendo as balas, vi que alguns próximos a mim compraram algumas... Eu comecei a fuçar a minha carteira para ver se tinham ainda algumas moedas, porque geralmente fico sem dinheiro na maior parte do mês, mas felizmente eu tinha cerca de dois reais ainda... Entreguei as moedas, tudo o que eu tinha, nas mãos dele e disse que não queria bala, que era só para ajudar... Observei que ele e o outro menino pequeno sentaram-se num banco e se puseram a contar pacientemente as moedas que tinham, quando, em uma estação qualquer, entra um homem com uma bolsa, trazendo alguns folhetos xerocados com ele. Ele passa a distribuir os folhetos de pessoa em pessoa também, sendo ignorado por muitos. Era um texto com duas fotos, de uma criança acamada, em estado bem grave, dizendo que necessitava de uma cirurgia urgente, que não tinha disponível pelo nosso sistema de saúde. Li o texto e lamentei ter entregue todo o meu dinheiro ao menino, pois não tinha nada com que pudesse ajudar aquele homem abatido. Mas eis que percebo neste momento que os meninos que estavam logo a minha frente pedem para ler o papel que o homem tentara distribuir aos demais e o maior se coloca a ler em voz alta o conteúdo do folheto para o menino menorzinho. Vi algo que meus olhos custaram a crer: o menino pegou todas as moedas que tinham e entregou para aquele homem. Um gesto que muitos ali dentro sequer se importaram em não poder fazer. Ao observar aquilo, tive a certeza de que ajudei aos três, mesmo que indiretamente e pensei que a Grande Mãe muitas vezes opera de uma forma que custamos a entender. Os dois meninos, que, naquela hora da noite deveriam estar na segurança de seus lares, dormindo em flanelas macias, fizeram algo que a humanidade já não é mais capaz de fazer: olhar o seu próximo com compaixão. Eu me emocionei com aquilo e me toquei... Quando todos ali permaneciam inertes em seus mundos próprios, eu visualizei um milagre e chorei... Sabia que nunca mais seria a mesma depois daquele dia...
Nesta última semana, também na volta da aula, tarde da noite, observei que entrou no vagão do trem em que eu estava um menino, adolescente já, com 15 anos, como pude constatar ao ler o papel que entregou em minhas mãos. O papel, um pequeno xerox, com um texto de um português extremamente correto, falava que ele, o Matheus, estava ali pedindo dinheiro para ajudar seus pais que estavam desempregados. Eu só tinha cinco reais no bolso e queria voltar para casa de ônibus, pois estava cansada demais para caminhar. Então, quando o menino se aproximou de mim para pegar seu papel, com a possível doação de volta, eu propus a ele que trocasse o meu dinheiro, desta forma, lhe daria 2 reais e ele me daria o troco de 3. Puxei conversa com ele e ele ficou ali por perto numa conversa inicialmente tímida, mas que se aprofundou, pois ele permanecera a viagem toda perto de mim me contando um pouco de sua história. Disse que parou de estudar porque incomodava demais e quando a escola chamava sua mãe, ela não podia ir até lá por conta dos cuidados que dispensava ao filho com deficiência. Numa família de 8 irmãos, sendo que 4 estão casados e vivendo fora de casa, Matheus é o segundo mais velho, assumindo as responsabilidades de trazer o sustento aos seus demais familiares porque a mãe cuida do irmão que tem deficiência intelectual e o pai perdera o emprego que tinha de segurança de uma obra porque a obra fora fechada. Explicou que em muitos dias nem chega a voltar para casa, pois mora muito longe do centro da cidade e em muitos dias não consegue dinheiro suficiente para ir para casa de ônibus. Tive a oportunidade de falar para ele algumas coisas que considerei importantes já que não tínhamos muito tempo, que era muito importante que ele voltasse a estudar, nem que fosse para dar o exemplo aos seus irmãos menores, disse que ele precisava preservar sua segurança, enfim, quando descemos na estação, dei um abraço apertado nele, ciente de que plantei uma semente ali, mesmo que pequena...
Trouxe este relato porque sinto quando não posso ajudar estas pessoas... realmente sinto. Alguns dizem: "mas e se gastar com drogas?",  "e se levar para casa e o pai for alcoólatra?" e eu vou dizer uma coisa a vocês: acredito muito em fazer a minha parte, em fazer o bem sem olhar muito a quem. Se a pessoa que ajudei fizer um uso errado da ajuda que dei, pois bem, quem estará adquirindo uma dívida com o Universo será ele, não eu. Há um descaso imperando por toda parte, um discurso pronto, articulado de forma que as pessoas sintam-se menos responsáveis umas pelas outras... Mas queria que estes discursos não endurecessem a humanidade como tem endurecido nos últimos tempos... Queria que as pessoas dessem um outro olhar, se colocassem um pouco no lugar do outro. Sou assim mesmo, idealista... Acredito que mudamos o mundo começando por nós mesmos. Muitas vezes não tenho um real para dar, mas sempre, sempre, terei uma palavra amiga para compartilhar, um sorriso, um desejo de "boa sorte"... Estender a mão nem sempre significa ajudar financeiramente, muitas vezes pode estar em um olhar, em uma palavra... Então, pessoas, o que tenho a dizer é que espero que a humanidade volte a ser humanizada e humanizadora... Que estejamos sempre atentos a estes pequenos sinais mágicos que a vida nos dá, pois a grandeza muitas vezes está mais perto de nós do que possamos imaginar... Que este descaso humanitário não seja mais parte de nossas rotinas... Que nossos sorrisos salvem essas pessoas da indiferença que as assola!