sábado, 20 de outubro de 2012

Descaso humanitário


Estava há cerca de dois meses para escrever sobre este assunto, mas, hoje, tendo acontecido novamente, percebi que não dormiria bem se não escrevesse antes de deitar... A questão é que quando ando de trem posso sentir o quanto as pessoas andam duras... Não podem perceber as pequenas magias que as cercam... A questão que trago hoje muito provavelmente já permeou muitas realidades, pelo menos daqueles que já andaram de trem alguma vez na vida...
Eu vou a Porto Alegre uma vez por semana por conta de uma pós graduação que faço por lá, então é certo que neste dia estarei no metrô, isso sem contar as outras vezes que vou a passeio em finais de semana, é um meio seguro, prático e ágil de ir para lá, algumas pessoas inclusive deixam seus carros em estacionamentos para evitarem o trânsito caótico da cidade. Enfim, quem utiliza o trem para seu deslocamento sabe que muitas e muitas vezes encontrará aqueles famosos personagens que estão sempre por ali: pedintes, vendedores e afins. Então, a prática de todos em geral é sempre a mesma: eles te dão um papelzinho com um breve histórico que explica o por que de estarem ali... Quando são surdos, dizem que são surdos e normalmente o que vendem vem junto com o alfabeto em Libras, que certamente irá parar em alguma lixeira por aí...
Então, o que venho relatar hoje, são duas experiências que tive com alguns destes personagens típicos, uma há uns dois meses e outra nesta última semana... 
Eu estava voltando, depois da aula, umas dez e pouco da noite, quando entrou no vagão em que eu estava um menino - que depois percebi estar acompanhado por outro menino mais jovem ainda que ele - carregando uma sacola visivelmente pesada demais para ele... Ele se ajeitou em um canto e tirou da sacola uma caixa de balas de goma, dentre outras que ainda ficaram na sacola. Ele passou de pessoa em pessoa oferecendo as balas, vi que alguns próximos a mim compraram algumas... Eu comecei a fuçar a minha carteira para ver se tinham ainda algumas moedas, porque geralmente fico sem dinheiro na maior parte do mês, mas felizmente eu tinha cerca de dois reais ainda... Entreguei as moedas, tudo o que eu tinha, nas mãos dele e disse que não queria bala, que era só para ajudar... Observei que ele e o outro menino pequeno sentaram-se num banco e se puseram a contar pacientemente as moedas que tinham, quando, em uma estação qualquer, entra um homem com uma bolsa, trazendo alguns folhetos xerocados com ele. Ele passa a distribuir os folhetos de pessoa em pessoa também, sendo ignorado por muitos. Era um texto com duas fotos, de uma criança acamada, em estado bem grave, dizendo que necessitava de uma cirurgia urgente, que não tinha disponível pelo nosso sistema de saúde. Li o texto e lamentei ter entregue todo o meu dinheiro ao menino, pois não tinha nada com que pudesse ajudar aquele homem abatido. Mas eis que percebo neste momento que os meninos que estavam logo a minha frente pedem para ler o papel que o homem tentara distribuir aos demais e o maior se coloca a ler em voz alta o conteúdo do folheto para o menino menorzinho. Vi algo que meus olhos custaram a crer: o menino pegou todas as moedas que tinham e entregou para aquele homem. Um gesto que muitos ali dentro sequer se importaram em não poder fazer. Ao observar aquilo, tive a certeza de que ajudei aos três, mesmo que indiretamente e pensei que a Grande Mãe muitas vezes opera de uma forma que custamos a entender. Os dois meninos, que, naquela hora da noite deveriam estar na segurança de seus lares, dormindo em flanelas macias, fizeram algo que a humanidade já não é mais capaz de fazer: olhar o seu próximo com compaixão. Eu me emocionei com aquilo e me toquei... Quando todos ali permaneciam inertes em seus mundos próprios, eu visualizei um milagre e chorei... Sabia que nunca mais seria a mesma depois daquele dia...
Nesta última semana, também na volta da aula, tarde da noite, observei que entrou no vagão do trem em que eu estava um menino, adolescente já, com 15 anos, como pude constatar ao ler o papel que entregou em minhas mãos. O papel, um pequeno xerox, com um texto de um português extremamente correto, falava que ele, o Matheus, estava ali pedindo dinheiro para ajudar seus pais que estavam desempregados. Eu só tinha cinco reais no bolso e queria voltar para casa de ônibus, pois estava cansada demais para caminhar. Então, quando o menino se aproximou de mim para pegar seu papel, com a possível doação de volta, eu propus a ele que trocasse o meu dinheiro, desta forma, lhe daria 2 reais e ele me daria o troco de 3. Puxei conversa com ele e ele ficou ali por perto numa conversa inicialmente tímida, mas que se aprofundou, pois ele permanecera a viagem toda perto de mim me contando um pouco de sua história. Disse que parou de estudar porque incomodava demais e quando a escola chamava sua mãe, ela não podia ir até lá por conta dos cuidados que dispensava ao filho com deficiência. Numa família de 8 irmãos, sendo que 4 estão casados e vivendo fora de casa, Matheus é o segundo mais velho, assumindo as responsabilidades de trazer o sustento aos seus demais familiares porque a mãe cuida do irmão que tem deficiência intelectual e o pai perdera o emprego que tinha de segurança de uma obra porque a obra fora fechada. Explicou que em muitos dias nem chega a voltar para casa, pois mora muito longe do centro da cidade e em muitos dias não consegue dinheiro suficiente para ir para casa de ônibus. Tive a oportunidade de falar para ele algumas coisas que considerei importantes já que não tínhamos muito tempo, que era muito importante que ele voltasse a estudar, nem que fosse para dar o exemplo aos seus irmãos menores, disse que ele precisava preservar sua segurança, enfim, quando descemos na estação, dei um abraço apertado nele, ciente de que plantei uma semente ali, mesmo que pequena...
Trouxe este relato porque sinto quando não posso ajudar estas pessoas... realmente sinto. Alguns dizem: "mas e se gastar com drogas?",  "e se levar para casa e o pai for alcoólatra?" e eu vou dizer uma coisa a vocês: acredito muito em fazer a minha parte, em fazer o bem sem olhar muito a quem. Se a pessoa que ajudei fizer um uso errado da ajuda que dei, pois bem, quem estará adquirindo uma dívida com o Universo será ele, não eu. Há um descaso imperando por toda parte, um discurso pronto, articulado de forma que as pessoas sintam-se menos responsáveis umas pelas outras... Mas queria que estes discursos não endurecessem a humanidade como tem endurecido nos últimos tempos... Queria que as pessoas dessem um outro olhar, se colocassem um pouco no lugar do outro. Sou assim mesmo, idealista... Acredito que mudamos o mundo começando por nós mesmos. Muitas vezes não tenho um real para dar, mas sempre, sempre, terei uma palavra amiga para compartilhar, um sorriso, um desejo de "boa sorte"... Estender a mão nem sempre significa ajudar financeiramente, muitas vezes pode estar em um olhar, em uma palavra... Então, pessoas, o que tenho a dizer é que espero que a humanidade volte a ser humanizada e humanizadora... Que estejamos sempre atentos a estes pequenos sinais mágicos que a vida nos dá, pois a grandeza muitas vezes está mais perto de nós do que possamos imaginar... Que este descaso humanitário não seja mais parte de nossas rotinas... Que nossos sorrisos salvem essas pessoas da indiferença que as assola!


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