Hoje amanheci ansiada, com uma sensação de que deveria me manifestar a respeito do feminismo, já que tenho lido tanta bobagem nas redes sociais a respeito da citação de Simone de Beauvoir, na prova do ENEM.
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino. BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
Ao negar a assertividade desta frase, estamos negando que os seres humanos não são apenas seres biológicos, mas também são uma construção sócio-histórico-psíquica e, por que não dizer, também espiritual. A biologia, tão e somente, não faz de nós quem somos. E, ao negar essa completude, esse ser holístico que somos, negamos também a subjetividade do outro que nos cerca.
O fato é que precisamos do feminismo, quer as pessoas gostem ou não. Precisamos do feminismo quando, ao ir para a parada de ônibus vazia num domingo, e ser confundida (pela milésima vez) com uma prostituta, o homem que me aborda diz que, se eu não quisesse ser confundida, não usaria batom vermelho. Precisamos do feminismo quando, ao estar à espera de um ônibus em uma das rodovias mais movimentadas, sozinha, pelo menos cinco de cada dez carros passa e buzina. Precisamos do feminismo quando a simples presença de mais de um homem em um local que estou sozinha, em vez de me provocar alívio, me causa medo. Precisamos do feminismo quando eu estou em uma festa e os caras se acham no direito de invadir meu território e tocar em mim sem autorização prévia. (Mas, afinal, o que eu estava fazendo com aquela roupa? O que eu estava fazendo na balada? Por que eu estava bebendo, não é mesmo?) Precisamos do feminismo quando tenho medo de voltar para casa à noite, mesmo que eu tenha ficado até tarde na rua para trabalhar ou estudar, isso realmente não importa. Precisamos do feminismo quando meu medo de ser estuprada faz com que eu deixe de sair em alguns momentos, ou, quando eu saí, me faz correr pela rua, na ânsia de chegar segura em casa. Precisamos do feminismo quando eu passo oito anos apanhando de uma pessoa que prometeu me proteger diante do altar. Precisamos do feminismo quando eu sou estuprada por este mesmo homem, que pensa que o papel assinado dá a ele este direito. Precisamos do feminismo quando eu sou abusada sexualmente por um primo ainda na primeira infância. Precisamos do feminismo quando na adolescência um cara tenta me estuprar enquanto ainda estou bêbada e, quando tento denunciar, me dizem que minha roupa o provocou. Precisamos do feminismo quando um cara goza na minha calça no trem e tento esconder porque me sinto constrangida. Precisamos do feminismo quando eu crio meus filhos sozinha e ninguém questiona meu ex marido pelo fato de nunca ter dado assistência. Precisamos do feminismo quando agradeço por minha filha ter chegado à adolescência sem nenhum trauma sexual. (Muito embora eu saiba que, pelo simples fato de ela ter se tornado uma mulher, correrá o risco o resto da vida!)
Lógico que não espero empatia por parte de quem está preso na sua redoma de vidro, dizendo que a citação de Simone é tendenciosa e esquerdista. Não espero que entendam, quando até mesmo as mulheres dizem que não precisam do feminismo. Mas, uma vez que vivemos em um país democrático (pra quem?), espero um mínimo de respeito.
Questões de gênero devem ser abordadas. A violência contra a mulher é uma realidade. Ainda vivemos sob a influência do patriarcado branco/europeu/cristão. E, os leitores de Olavo de Carvalho que me desculpem, mas o fato de vocês irem para a guerra desde os primórdios não faz de vocês melhores do que nós. Afinal de contas, quem gera, homem ou mulher, ainda somos nós. E que comecem os mimimis!