sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O tempo

 O tempo tem me atravessado, vem em ondas e beija meus pés, me transforma a cada novo dia. Hoje não sou a mesma de ontem e amanhã certamente não serei a mesma de hoje. Essa transformação se reflete no espelho, no rosto que perde, aos poucos, o brilho da juventude, e vai ganhando sabedoria, a cada sinal, a cada fio de prata que surge em meus cabelos...

O tempo, às vezes manso como a brisa, às vezes tempestuoso, confuso, vem em ondas e lambe meus pés, tal e qual a água do mar, me fazendo sentir na pele - hj não mais tão viçosa como outrora - o frio do inverno ou aquele frescor necessário nas tardes quentes de verão... O tempo me invade... Me concede... Me priva... 

O tempo, companheiro fiel desde que nasci, caminha ao meu lado junto com a Morte. O tempo e a Morte são amigos de longa data. Um não vive sem o outro. E, caminhando, os três, ombro a ombro, vamos construindo e desconstruindo coisas na nossa passada: pontes, muros, paredes, corações... 

O tempo, belo e fugaz, me deixa revisitar momentos remotos, nas lembranças tenras, presas em meus cabelos como laços coloridos de fita... Tem dias que volto às tardes preguiçosas de verão na casa da minha avó... As caçadas aos tatus-bola, as roupas esvoaçantes no varal erguido alto por uma taquara, as plantas trepadeiras floridas multicor. Sinto cheiros, sinto o calor do sol em meu rosto e quase, muito quase, posso abraçar novamente o corpo frágil da minha avozinha. "Só visita" - diz o sábio tempo, lembrando que ele jamais volta...

O tempo, nesses dias pandêmicos, tornou-se preguiçoso e lento. Passa a cada dia como se fossem muitos dias em um... Potencializou faltas e saudades, enquanto que em outros lugares não tão distantes encerrou sonhos e promessas. A amiga Morte tem andado ocupada... Enquanto o tempo nos faz perceber de forma dura que não somos nada além de pó de estrelas. É pra lá que voltaremos. "Por favor, não agora!" - peço eu ao tempo e à Morte. O tempo ri. A Morte observa, calada.

O tempo tem brincado comigo e com as pessoas. Nós, que sempre corremos contra o tempo no nosso dia a dia, apressados para chegar na hora, cumprir prazos, vencer metas, de repente estamos presos em dias iguais. Rotinas de cuidados e abstenções em prol de cuidar do outro. Hoje não nos vemos para que possamos estar juntos novamente amanhã. "Quem disse que estaremos?" - ri, de novo, o tempo. Não sei, mas eu gostaria de estar...

O tempo é irônico. Nos leva a lugares incomuns, nos faz perder pessoas pelos caminhos, encontrar outras e, nessas ondas que chegam e vão o tempo todo, ele corre. Nunca pára. Mesmo naqueles momentos em que gostaríamos de morar. Não! Esses momentos são os mais fugazes, são os que passam mais rápido... O tempo precisa andar, sempre. Mesmo que ande de um jeito torto e estranho, como agora, na pandemia... 

Foi o inverno mais longo da minha vida, mesmo eu podendo vivê-lo como sempre sonhei: quentinha, embaixo das cobertas, em hibernação constante. Ainda assim, as ondas do tempo bateram em mim tempestuosas, fortes, me derrubaram algumas vezes. Suas águas gélidas me fizeram tremer de frio. E eu odeio frio. Ainda assim, olhei pra Morte e clamei, com carinho: "Não, agora não!" 

O tempo tem invadido tudo. O contar de minutos das aulas, das lives... A hora do médico, as horas de comer e dormir, hoje tão avessas ao usual. Não temos mais as horas, dias, semanas como conhecemos... É tudo um emaranhado... Emaranhado de sentires e de saudades. Emaranhado de sonhos... Saudades do "normal"... Mas, e o que é o normal? Pergunto-me o tempo todo. Eu, que vivia na rua trabalhando, que quando reparei, vi meus filhos crescidos, hoje, com todo tempo do mundo, vivo presa em trabalhos virtuais, grupos de Whatsapp e tenho um medo enorme de me perder e não ver meu neto crescer...

O novo normal é o tempo brincando com a gente, mostrando que não adianta ter pressa e que cada coisa tem seu próprio tempo: tempo de chegar, tempo de florescer, tempo de ir... Nossa urgência nada significa hoje. Estamos presos, sem poder abraçar nossos amigos e abraçando nossos familiares com medo... A vacina? No tempo certo. Enquanto isso, vamos vivendo... Entendendo a grande fucking dádiva que é estar vivo. Sonhando em poder sair pra dançar e tomar banho de cachoeira de novo. Aprendendo a valorizar cada momento... Até porque nunca saberemos quando será o último. Ou quanto tempo demoraremos para viver aquilo outra vez. Obrigada, tempo, eu finalmente entendi! 

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