Estive pensando por estes dias sobre algumas práticas envolvidas nos afazeres diários dos quais eu faço parte... Sou intérprete de Libras. Não porque tenha formação específica ou porque tenha passado no ProLibras, mas porque minhas vivências com a surdez me deram esta formação... Diplomada sou mesmo em Pedagogia em Educação Especial, o que faz de mim também uma professora. Trabalho numa escola do Estado, sendo assim, conheço toda a problemática do ensino público do qual faço parte. Salários baixos, falta de recursos, escola sucateada... Pois bem... Já falei nisso em outros momentos...
Mas, por outro lado, não posso me abster de falar que a coisa não é assim tão grave quanto a maioria pinta por aí. O governo dá formações continuadas ao professorado que muitos não aproveitam, a escola recebe recursos que muitas vezes são mal direcionados por uma gestão equivocada... Mas nem é isso que quero debater aqui...
Como intérprete, aprendi que devo ser imparcial, que a neutralidade deve fazer parte do meu trabalho e que jamais poderei agregar quaisquer juízos de valor aos acontecimentos do dia a dia. Mas, como professora, aprendi que não há neutralidade no ato de ensinar/aprender. Então, sem dissociar a professora da intérprete, vejo que a pedagogia está envolta das nossas interpretações também e da interpretação de mundo que fazemos sentir através delas.
Citando Freire, "Não existe educação neutra, toda neutralidade afirmada é uma opção escondida."
Sendo assim, entendo que, ao atuar dentro de sala de aula, o(a) intérprete já não poderá ser apenas intérprete, ele(a) terá de ter um olhar pedagógico centrado e baseado em práticas que contribuam de forma efetiva na formação destes sujeitos com quem trabalha.
O governo entende que, dentro dos processos de inclusão, o(a) intérprete dá condições de igualdade com os ouvintes aos sujeitos surdos. Dentro desta lógica, apenas a interpretação das aulas na língua de sinais viabilizaria o aprendizado da mesma forma que os outros aprendem. Isso não é possível. Definitivamente. Quem conhece a cultura surda sabe. Eles são sujeitos culturais, que vem de um histórico peculiar de vida pessoal e escolar. E isso deve ser considerado quando falamos em processos educacionais.
Desta forma, o olhar deste profissional deve ser diferenciado, deve contemplar as necessidades dos educandos como um todo, pois o(a) intérprete é a voz destes sujeitos em todos os outros espaços e não apenas na sala de aula.
Em mês de manifestações acerca da surdez e de colocações midiáticas errôneas, penso que é muito necessário que se (re)façam as reflexões a fim de que haja um esclarecimento e para engajar a luta pelo fim das práticas arbitrárias.
Sabemos que a inclusão dos surdos certamente se dá por um outro viés que não é o mesmo das outras inclusões, afinal, não estamos tratando de um déficit, mas sim de uma questão cultural que deve ser preservada e mantida. Os intérpretes são também mantenedores dessas especificidades. E é este o ponto que quero chegar. Não podemos nos abster de representá-los enquanto parte de sua comunidade, enquanto pessoas especializadas na área. Devemos ser propagadoras das informações, com a finalidade de acabarmos de uma vez por todas com as tentativas de normalização pelas quais eles passam no seu dia a dia, em suas casas, em seus locais de trabalho, na sociedade. Estou falando do olhar pedagógico, tão necessário, mas pouco utilizado. Estou falando em respeitarmos a diferença enquanto materialidade, de apoiarmos estes sujeitos para que realmente tenham um desenvolvimento pleno de suas subjetividades, estou falando em ser muito mais do que um(a) intérprete.
Muitas pessoas acreditam que penso assim porque falo de um lugar diferente, porque me tornei intérprete por ter uma filha surda, mas não é apenas isso. Reconheço de fato que isso me torna diferente, mas, no sentido totalitário, esta forma de pensar deveria permear todas as práticas envolvidas com a surdez. Não é apenas a questão familiar que me faz diferente, mas meu olhar se desloca porque acredito no que eu faço enquanto professora também. Quando disse antes que não há neutralidade, reafirmo isso no meu olhar. Acredito muito nas capacidades destes seres, acredito muito no surdo enquanto sujeito de sua própria história, narrando-se a si mesmo e não mais sendo narrado. Assim que é e assim que deveria ser.
Sou meio Dom Quixote... travo lutas solitárias dentro e fora da escola por este reconhecimento. Se acredito na inclusão? Isso só o tempo irá dizer... e este discurso não pode resumir-se em ser apenas contra ou a favor. Ele deve promover discussões, deve gerar desacomodação, deve fazer com que caminhemos, mesmo que diante de um terreno desconhecido. Sinto-me sozinha quando vejo intérpretes apenas sendo intérpretes. Há outros espaços para isso, mas certamente o espaço escolar não nos permitirá nunca que sejamos apenas isso.
Pode parecer pouco profissional da minha parte, sei que recebo críticas diárias quando falo isso, mas sou muito mais do que intérprete e professora, sou amiga, sou confidente, sou meio "mãe" de cada um dos meus alunos. E me orgulho disso! Nem sei se conseguirei provocar as mudanças que são necessárias para que a inclusão realmente se efetue, mas eu faço a diferença porque entendo que ela começa por mim, dentro de mim e nos espaços em que ocupo.
Espero, sinceramente, que o papel do(a) intérprete passe a ser (re)pensado porque a neutralidade acaba onde começa o processo de humanização dos sujeitos. Pensem nisso!
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