segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Sobre as bruxas... por Gi Stadnicki.

BRUXAS?
No meu mundo há bruxas sim!
E elas sobrevivem muito abaixo dessa crosta de aparências bizarras, tão frágil quanto esmagadora...
Sobrevivem onde sopram os ventos divinos...espiralando e circulando...e em meio à eles, elas dançam!
E é nas profundezas de tudo que há onde ainda conseguem respirar.
No meu mundo as bruxas vão bem além das vassouras, dos chapéus pontudos e do ar cinematográfico...
Humana bruxa!
E curiosas, se misturarem às massas, pulando fora das lendas, conectando-se às gentes, impregnando-se dos cheiros e gostos, sorvendo pensamentos e sentimentos, somando-se às misturas e culturas...à vida, sem subterfúgios...
Sem medos!
Pois o velho caldeirão fumega dentro dela, esse sim, persiste! Dele fazem questão! E é a essência delas.
É o que as faz o que são...

No meu mundo as bruxas rezam!
Rezam baixinho, rezam alto, rezam de joelhos, de cócoras, rezam dia e noite...
Rezam rindo, rezam chorando, rezam vivendo e rezam morrendo...
Enquanto cuidam de suas coisas, e das de todo mundo, porque essa é sua sina...
Sagrada bruxa!
No meu mundo, bruxa é a mulher que ensina.
Independente se é velha, moça ou menina...
Depende só se traz consigo aquela inquietação.
Aquela agonia que dentro da gente faz eterno turbilhão...
Um desassossego, sem precedentes.
Parece que tem um bicho...
Uivando dentro da gente...
Sem aceitar, sem entender, sem permitir...
Sem aguentar, que o grito de quem quer que seja, ecoe por aí indiferente.
No meu mundo, bruxa é mulher perseguida...
Sou eu, você e ela. Aquela, a outra, e a de saia amarela...
Somos nós, as oprimidas, as desvalidas, as violentadas, as agredidas, as escondidas, as malvistas e as mal faladas...
E as curiosas. As indomáveis. As ávidas pelo oculto, pelo que transgride, as de língua afiada!
Despudoradas de alma...
Incapazes de se saciar com mentiras...
Impossíveis de calar diante do absurdo.
Maldita bruxa!
No meu mundo, é bruxa sim, toda e qualquer que em algum momento nessa vida, se entendeu parte do todo...
Se percebeu um fragmento de estrela, uma gota de chuva, um pio na escuridão...
É sim senhora, não fuja disso não!
Pois já desceu ao fundo do poço...
Não tem mais jeito...
Triste de ti mulher, que um dia se viu resumida a um soluço de compaixão...
Triste de ti, que se viu traduzida em emoção...
Triste de ti, que se pegou decifrada em paixão...
E virada e revirada em cólicas de empatia...
Trespassada pelo amor. Meio Deus, meio Deusa, Tudo...ou Nada.
Exaltada e decaída, ao mesmo tempo.
Anjo e demônio...
Não tem mais jeito bruxa...
E tô te elogiando mulher! Vem, vamos dividir a carga uma com a outra...
O meu mundo, é o mesmo teu.
E a esse mundo de insanidade e encanto...
Bem vinda, bruxa!
BLESSED BE!

(Gi Stadnicki.)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

É preciso morrer algumas vezes antes de viver realmente

Antigamente corria contra o tempo, corria para chegar na hora nos lugares, ficava ansiosa, e quase nunca conseguia chegar, mesmo com toda correria... Horários nunca foram meu forte, mesmo. Mas sempre me afligiram muito.
Hoje me alinhei às minhas limitações, afinal de contas, o que não tem remédio, remediado está. Faço minhas orações quando dá, chego na hora se consigo sair cedo, sendo que sempre, sempre tomo meu café calmamente, não saio sem café de casa. Nunca! Disso não abro mão.
De tanto tentar nadar contra a maré, hoje alcancei um ponto de equilíbrio comigo mesma. Já não corro mais pela rua, já não fico enlouquecida quando não consigo pagar alguma conta. Dificilmente algo me abala a ponto de me fazer chorar ou perder a compostura.
Algumas pessoas chamam isso de frieza, egoísmo, eu chamo de maturidade. Já perdi tanta gente em meu caminho, algumas pessoas que voltaram com o passar do tempo, a conviver comigo, outras que talvez nunca voltarão, mas o fato é que a gente começa a ficar forte diante de certas dores...
Despeço-me e deixo ir. Outras pessoas sou eu mesma que dispenso. Quando temos energias tão distintas não adianta forçar o "ficar junto", porque devemos aceitar que temos níveis de evolução diferenciados. Às vezes a gente está mais evoluído, às vezes é o outro que deve esperar pela gente. A vida é assim mesmo. Idas e vindas, altos e baixos.
Simplesmente aprendi a não me debater. Não mais. Aceito o que vier, seja o que for. E acredito que esteja começando a viver de fato somente agora, depois de ter morrido tantas vezes. Crescer dói. Doeu muito e ainda vai doer. Tenho plena consciência disso. E espero ainda evoluir mais. 
Como disse Bukowski em sua célebre frase que tenho tatuada em minha costela direita, como algumas pessoas dizem que a vida começa aos 40, hoje, mais do que nunca, tenho certeza absoluta de que a minha está recém começando. Dispensando o que for preciso, me agarrando ao que considero precioso (e que amanhã já poderá não ser), vou vivendo. Andando com calma até o trem, para chegar uma hora atrasada... Enfim, assim vou eu... Criando asas quando perco o chão e voando além, enquanto tiver céu... Porque fui feita de plumas e não de raízes!

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Precisamos falar sobre Lúcia

A menina de 16 anos, Lúcia, da Argentina, morreu sozinha. A minha empatia, ao ler as muitas reportagens que surgiram desde o dia 8 deste mês, fez com que eu me colocasse no lugar dela inúmeras vezes. Ou, ainda pior, imaginei se fosse com minha filha, hoje com 18 anos.
Imaginei o desespero, os olhos a buscarem por algo ou alguém que pudesse estender a mão, mas ali só haviam seus algozes. Morreu de dor, segundo as perícias. Alguém consegue imaginar isso? Como deve ser desmaiar por não conseguir suportar a dor? Pois então... Fiz esse movimento muitas vezes ao longo desta semana. E não foi fácil. 
Fui abusada. Sim, fui, quando menina e depois, já adolescente, saindo de uma festa. No segundo episódio, optei por não denunciar porque meus amigos homens disseram que eu havia provocado o incidente por conta das minhas roupas. Tive medo. O primeiro episódio eu tinha cinco anos, nem sabia que aquilo era abuso. Quando dei por conta, quando percebi, já um pouco maiorzinha, o que se passava, contei para pessoas em quem eu confiava, meus tios. Foi muito sofrido, porque era uma pessoa da família. 
Depois, quando estava na escola, lá pelo segundo ano do fundamental, apanhei de um menino na aula de educação física. Esse soco no estômago acarretou uma semana ou mais de internação e hematúria nos rins que até hoje eu tenho que controlar com exames. 
Mais tarde, casada com o cara que eu amava, deparei-me com a violência doméstica em todas as suas versões - física, psicológica e econômica. Foram oito anos de violência, dez de casamento e doze de relacionamento. Um mar de lágrimas e um baita amadurecimento. Nem sei contabilizar quantas vezes fiz as malas pra ir embora. Quantas vezes parei na porta de madrugada para partir, mas me retive pelos meus filhos. Só com eles, eu pensava. 
Conto essas histórias porque tenho hoje 37 anos, quase 38, e a violência sofrida pela mulher não é de hoje. E é, sim, cultural, infelizmente. Quando li a história de Lúcia, tive uma sensação de dor, pois livrei-me da morte por muito pouco, e de alívio, pois minha filha jamais passou por uma situação destas. Mas, todos os dias, desde que amanhece, tenho plena consciência de que nem ela, nem eu e nem nenhuma mulher está, de fato livre de vivenciar este terror. 
Sendo mulher, tendo vivido o abuso, tendo convivido com abusadores, impossível não sentir temor pelo futuro, impossível não sentir calafrios com a mera possibilidade de acontecer essa brutalidade a alguém próxima. Simplesmente não sei o que faria. Não consigo sequer imaginar como ficou essa família, a dor sentida pelo sofrimento dela... Se fosse comigo, acho que ia preferir ir junto da minha filha... Não conseguiria viver sabendo do que ela passou...
Mas escrevo hoje porque muitas mulheres sofrem caladas, morrem, pouco a pouco, em seus lares, em silêncio. Clamam por socorro sem serem ouvidas. O que leva alguns homens a virarem monstros, não sei. Há toda uma influência histórica do patriarcado branco-europeu-cristão, que sempre subjugou as mulheres, talvez seja isso que ainda assombra os nossos dias. Mas, assim como na Argentina não se calaram, não podemos permitir que aqui no Brasil, país que é quinto lugar no ranking de violência contra a mulher e que sabemos que leis como a Maria da Penha são apenas paliativas, não protegem, de fato, as que estão em situação de risco, esse tipo de coisa caia dentro da normalidade. Mais uma vez digo, não é normal ser estuprada. Não é bonito ser coagida. E só quem sente na pele é que sabe o que isso significa. Sabe como é não poder andar livremente, não poder usar a roupa que bem entender. Clamamos pela mesma liberdade que os homens tem. Por igualdade de direitos. Só isso. Cada vez que morre uma de nós, fica ainda mais clara a função do feminismo no mundo. Ainda não somos iguais.
Lúcia era uma menina. Tinha sonhos, desejos, que foram brutalmente interrompidos pela barbárie do mundo em que vivemos. Empalada. Morta. Friamente limpa e jogada às portas de um hospital. Pensem nisso. Poderia ser uma de nós. Uma irmã, uma prima, uma amiga, até mesmo uma filha. Que a dor dela, a dor dessa família se traduza em sororidade. Nenhuma a menos. Assim que deve ser. Que a dor dela seja a nossa dor. Porque, se não fizermos algo logo, certamente o será, de fato.
Eduquem seus filhos para que não invadam espaços alheios, eduquem suas filhas para serem empoderadas, para se amarem, acima de tudo, independente da aparência. Deixem um mundo melhor para o futuro não tão distante. Ninguém merece ser estuprada, ninguém! E nenhuma vítima é culpada pelo abuso que sofreu. Mulheres, libertem-se! Denunciem! Saiam de relacionamentos no primeiro sinal de abuso. Estamos juntas e, juntas, somos mais fortes!



quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Sobre ser professora...


Eu nunca quis ser professora. Nunca mesmo. Lembro-me até hoje de quando, na pré escola, a professora, que eu achava uma bruxa, perguntou pra turma o que todos queriam ser quando crescer. Saíram coisas bem legais: astronauta, bailarina, etc. Prova de que as crianças ainda sonhavam, que bom... A minha resposta? Artista de circo! Sério! Eu ficava fascinada em ver aquelas pessoas sem raízes, que iam e vinham livres... E que tinham toda a atenção quando estavam no palco, no picadeiro... Era mágico! E, hoje eu sei, a magia sempre esteve em mim, talvez por isso a minha escolha...
Pois bem, cresci. E cresci mais nas casas dos meus avós do que na minha própria, sorte a minha, já que morava em apartamento sem pátio. Pátio tinha de sobra, pátio com lagartas, borboletas e tatus-bola. E gatos, muitos gatos. De todas as cores! E, dentro deste universo fantástico, depois de muitas caixinhas de insetos colecionadas e de ver muitos e muitos filhotes de gatos nascerem e crescerem, qualquer um que me perguntasse, durante toda a minha adolescência, o que eu queria ser, a resposta era certeira: veterinária. (Lógico que, depois, com a consciência dos valores dos cursos, até bióloga servia, desde que estivesse perto dos bichos.)
Pois bem, o resto da história todo mundo sabe, já mencionei mais de uma vez, terminei o ensino médio grávida, a Ju nasceu surda e, desde então, começou uma peregrinação para proporcionar a ela o que eu considerava o melhor. A oportunidade de voltar a estudar surgiu com as bolsas. Agarrei-me a isso por uma questão de sobrevivência - era o único caminho para me livrar de meu relacionamento violento e abusivo. Sendo assim, iniciei minha caminhada, como bolsista integral, em uma das melhores universidades aqui do RS. Não fosse a bolsa, não teria conseguido, jamais, estudar. E, sim, era um grande potencial desperdiçado. Mas a sensação de não enquadramento atravessou comigo todo o curso. Minhas tatuagens fizeram muitos professores me dizerem que eu "não tinha perfil de pedagoga". A convivência com  muitas colegas de curso fez eu ter certeza disso. 
Os estágios me fizeram questionar ainda mais a minha escolha, pois, de fato, eu não me sentia pronta. Nunca consegui "puxar o saco" de professores para conseguir um lugar dentro da universidade. Sim, mais desperdício de um grande potencial. Comecei a trabalhar no Estado antes de me formar. Mas era como intérprete, então, beleza, nem senti tanto. Ainda assim, presenciando as práticas equivocadas de colegas de profissão diariamente, comecei a questionar o tempo perdido em uma formação que realmente não era o que eu queria... Meus primeiros anos dentro da educação especial foram sofridos. Construí e desconstruí a mim mesma incontáveis vezes. Aceitei as coisas que não podia mudar com muito custo e sofrimento, as que eu podia - e posso - mudar, esperneio até hoje. 
E, pra falar a verdade, ainda estou me constituindo professora, ainda não me considero professora, falta muita coisa a aprender e tenho aprendido todos os dias com as minhas práticas e com meus alunos. Não me sinto ainda à vontade com o título. Ainda que tenha um pedaço de papel lá em casa que diga e prove que sou. Acho até engraçado ver aqueles perfis sociais com nomes tipo "Professora Fulana de tal" ou "Pedagoga Ciclana". Gente, não é o diploma que me concede isso, é o que eu faço no dia a dia, pelo menos é o que eu penso a esse respeito. E vejo tanta coisa nessa minha caminhada que, sinceramente, tem gente que deveria usar o seu diploma para limpar a bunda. Bem isso mesmo. Pessoas frustradas que transformam as vidas dos alunos em verdadeiros infernos. Triste.  
Mas cá estou eu. Professora. Pedagoga. Trabalhando já há quatro longos anos em sala de recursos, buscando o melhor atendimento aos meus queridos alunos que já possuem tantas barreiras na vida, já enfrentarão tantas e tantas coisas. Na verdade, muitas decepções ainda seguem comigo. Mesmo concursada, o que eu achava, na minha mais doce ilusão, que já seria uma grande coisa na minha caminhada, as políticas públicas tem nos despedaçado dia após dia. Salários parcelados, condições precárias para trabalhar, psicológico em frangalhos em virtude de não darmos mais conta de manter o básico. Todos os meses passamos pela incerteza de podermos pagar - ou não - todas as contas. Em geral, tem de se deixar algumas, de fato, porque não há meios de vencer os juros do banco. Os colegas e eu, logicamente, temos sofrido com este descaso. E, não fosse isso o bastante, ainda temos um ambiente insalubre, hostil, onde é quase impossível firmar parcerias e onde o aluno geralmente paga o pato de não termos a valorização social necessária. 
Tudo é um círculo vicioso. Não recebo em dia o salário, me contento em fazer o mínimo, em me manter dentro da média. Neste processo, recuso-me a fazer o necessário para promover uma aprendizagem digna, pois não participo de formações continuadas, não faço as adaptações curriculares essenciais à inclusão e, desta forma, meu aluno vai fingindo que aprende enquanto eu finjo que ensino. A roda é essa. E quem perde são os alunos. Sempre. Isso que nem entro no mérito da greve. Dos movimentos. Porque isso fragmenta ainda mais a classe, desune, provoca desrespeito entre colegas. E notem que não estou me posicionando contra, considero até necessário o movimento de greve. Mas cada um sabe onde aperta o seu sapato e temos a obrigação de respeitar a opinião dos colegas.
Lamento todos os dias o rumo que as coisas tomaram. Mas busco fazer a diferença nas vidas dos meus alunos, isso é o que me prende a essa profissão tão pouco valorizada, tanto pela sociedade quanto por nós mesmos - com as práticas equivocadas dentro das escolas. Meus alunos são a principal razão por eu continuar tentando, por eu insistir. Porque tem escola em que eu realmente não me sinto à vontade, tem escola que sequer frequento a sala dos professores - outrora chamada de serpentário em uma palestra em que eu estava, - tem escola em que eu nem converso com colegas, por não fazer questão mesmo, por saber que não me acrescentaria muito. Vez ou outra eu ainda me pego pensando em mudar de profissão. Sei lá. Às vezes é melhor mesmo lidar com bicho do que com gente. Acho que a maioria das vezes. Mas aí me lembro dos alunos. Sim, ficarei um pouco mais por eles, só por eles... Não é pelo salário, não é pelos "privilégios" que o senhor ministro acha que temos, não é pelos colegas... Quem sabe um dia, não tão distante, poderei olhar para outros horizontes, mas, por hora, eu fico...



segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Sr. Gandalf, o cinzento



Foi num final de tarde de um dia de verão... Eu chegava do trabalho, num dia em que nada fora do comum havia acontecido, um dia como qualquer outro... Não sei se fui eu quem o encontrou ou se fui encontrada por ele... Mas o fato é que foi ele quem se fez ver, com seu miado estridente, miado de filhote. Não parou de miar enquanto eu o buscava pela rua freneticamente, mas veio quando eu o chamei e encontrou alento no meu colo. 
Em silêncio, foi até em casa comigo, no colo, quieto, como quem encontrara a paz e como quem soubesse que era ali, exatamente ali, que deveria estar. Chegando em casa, enfrentou certa resistência de seus irmãos, mas logo era parte da família. Era o ranzinza, o "na dele"... Gostava mesmo era de dividir a comida com os humanos...
Gato cinza, do pelo de veludo, dos olhos verdes brilhantes, era um gato forte. Passou por duas mudanças com a gente e nunca teve uma reação ruim. Mas, em compensação, nunca superou muito bem a perda do mano Kowalski. Até pouco tempo ainda ficava por tempo interminável olhando pelas janelas, miando na sacada, como quem chama alguém importante. E ele nunca voltou... E agora tu nunca vais voltar... Mas quero crer que vocês estão juntos, onde quer que estejam, esperando por nós, esperando pelos seus irmãos...
Desde o dia em que tu adoeceu meu coração se partiu em mil pedaços. Ver o brilho dos teus olhos apagado pela dor foi muito triste para mim e teus irmãos humanos. O sentimento de impotência, o resquício de esperança de que tudo pudesse melhorar... Como dizem, um pedaço de mim, de minha alma, foi contigo. E deixaste comigo um pedaço da tua. Espero viver tempo suficiente para que, um dia, eu me torne toda felina, ou metade felina e metade canina e não reste mais nada humano em mim. 
Também dizem que os gatos escolhem os donos. Acredito mesmo nisso. Sou abençoada por ter sido escolhida por tantos seres de luz. Sinto-me regozijada por saber que, naquela tarde quente de verão, passei a fazer a diferença na tua vida. Assim como fiz e faço a diferença nas vidas de tantos outros e queria fazer ainda mais, mas não posso. 
Ao longo destes anos em que estivemos juntos, foram muitas coisas vividas, muitas sonequinhas à tarde, muitos filmes no colinho, muitos sanduíches divididos e muitos pedaços de frango roubados... Tu eras o guardião da cozinha... Hahaha... Até agora ainda não acredito que vou chegar em casa e não vou te ver no móvel ao lado da porta, esperando para dar aquela espiada marota para fora, esperando para ganhar o cafuné sagrado... Não caiu a ficha, amigão! O Snape está inconsolável. Anda pela casa só dormindo os dias inteiros. Acho que ele não está entendendo muito o que aconteceu.
Arrependo-me de não tê-lo deixado dormir no côncavo de minhas costas nas últimas noites. Arrependo-me de não ter te dado mais tempo em meu colo, sempre atarefada entre uma coisa e outra... E essa lição levarei adiante para os teus irmãos que ficaram: nunca deixar para depois o carinho, nunca procrastinar o amor. Porque simplesmente não sabemos quando será a última vez, quando será o último suspiro. 
Disseram que tu estás muito melhor do que nós, que ficamos. Até acho que sim. Mas queria mais um tempo contigo. Queria que a cirurgia tivesse dado certo e que tivéssemos o brilho dos teus olhos por mais um tempo. Queria ter podido dizer adeus, como disse ao teu irmão, que ainda ronronou pra mim no último suspiro... Tá doendo, cara! Não teve um só dia em que eu não tenha lembrado e chorado a tua falta... E vai ser assim sempre... As lembranças permanecerão.
Já fiz uma combinação com os deuses de que, quando for a minha vez de partir, que eu vá pro céu dos bichos. E deve ser um lugar muito mais legal do que o outro céu. Cheio de novelos de lã, cadarços e um monte de coisas legais. Deve ter um gramado enorme e muita areia limpa... Esperem por mim, tu e teus irmãos. Agora tu podes dormir junto com o Kowalski de novo. Não deixa ele e Sr. Frodo brigarem. Logo, logo eu tô chegando por aí. E o reencontro, ahhh, esse é certo para aqueles que se amam! Até logo, Sr. Cinzento!