sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Precisamos falar sobre Lúcia

A menina de 16 anos, Lúcia, da Argentina, morreu sozinha. A minha empatia, ao ler as muitas reportagens que surgiram desde o dia 8 deste mês, fez com que eu me colocasse no lugar dela inúmeras vezes. Ou, ainda pior, imaginei se fosse com minha filha, hoje com 18 anos.
Imaginei o desespero, os olhos a buscarem por algo ou alguém que pudesse estender a mão, mas ali só haviam seus algozes. Morreu de dor, segundo as perícias. Alguém consegue imaginar isso? Como deve ser desmaiar por não conseguir suportar a dor? Pois então... Fiz esse movimento muitas vezes ao longo desta semana. E não foi fácil. 
Fui abusada. Sim, fui, quando menina e depois, já adolescente, saindo de uma festa. No segundo episódio, optei por não denunciar porque meus amigos homens disseram que eu havia provocado o incidente por conta das minhas roupas. Tive medo. O primeiro episódio eu tinha cinco anos, nem sabia que aquilo era abuso. Quando dei por conta, quando percebi, já um pouco maiorzinha, o que se passava, contei para pessoas em quem eu confiava, meus tios. Foi muito sofrido, porque era uma pessoa da família. 
Depois, quando estava na escola, lá pelo segundo ano do fundamental, apanhei de um menino na aula de educação física. Esse soco no estômago acarretou uma semana ou mais de internação e hematúria nos rins que até hoje eu tenho que controlar com exames. 
Mais tarde, casada com o cara que eu amava, deparei-me com a violência doméstica em todas as suas versões - física, psicológica e econômica. Foram oito anos de violência, dez de casamento e doze de relacionamento. Um mar de lágrimas e um baita amadurecimento. Nem sei contabilizar quantas vezes fiz as malas pra ir embora. Quantas vezes parei na porta de madrugada para partir, mas me retive pelos meus filhos. Só com eles, eu pensava. 
Conto essas histórias porque tenho hoje 37 anos, quase 38, e a violência sofrida pela mulher não é de hoje. E é, sim, cultural, infelizmente. Quando li a história de Lúcia, tive uma sensação de dor, pois livrei-me da morte por muito pouco, e de alívio, pois minha filha jamais passou por uma situação destas. Mas, todos os dias, desde que amanhece, tenho plena consciência de que nem ela, nem eu e nem nenhuma mulher está, de fato livre de vivenciar este terror. 
Sendo mulher, tendo vivido o abuso, tendo convivido com abusadores, impossível não sentir temor pelo futuro, impossível não sentir calafrios com a mera possibilidade de acontecer essa brutalidade a alguém próxima. Simplesmente não sei o que faria. Não consigo sequer imaginar como ficou essa família, a dor sentida pelo sofrimento dela... Se fosse comigo, acho que ia preferir ir junto da minha filha... Não conseguiria viver sabendo do que ela passou...
Mas escrevo hoje porque muitas mulheres sofrem caladas, morrem, pouco a pouco, em seus lares, em silêncio. Clamam por socorro sem serem ouvidas. O que leva alguns homens a virarem monstros, não sei. Há toda uma influência histórica do patriarcado branco-europeu-cristão, que sempre subjugou as mulheres, talvez seja isso que ainda assombra os nossos dias. Mas, assim como na Argentina não se calaram, não podemos permitir que aqui no Brasil, país que é quinto lugar no ranking de violência contra a mulher e que sabemos que leis como a Maria da Penha são apenas paliativas, não protegem, de fato, as que estão em situação de risco, esse tipo de coisa caia dentro da normalidade. Mais uma vez digo, não é normal ser estuprada. Não é bonito ser coagida. E só quem sente na pele é que sabe o que isso significa. Sabe como é não poder andar livremente, não poder usar a roupa que bem entender. Clamamos pela mesma liberdade que os homens tem. Por igualdade de direitos. Só isso. Cada vez que morre uma de nós, fica ainda mais clara a função do feminismo no mundo. Ainda não somos iguais.
Lúcia era uma menina. Tinha sonhos, desejos, que foram brutalmente interrompidos pela barbárie do mundo em que vivemos. Empalada. Morta. Friamente limpa e jogada às portas de um hospital. Pensem nisso. Poderia ser uma de nós. Uma irmã, uma prima, uma amiga, até mesmo uma filha. Que a dor dela, a dor dessa família se traduza em sororidade. Nenhuma a menos. Assim que deve ser. Que a dor dela seja a nossa dor. Porque, se não fizermos algo logo, certamente o será, de fato.
Eduquem seus filhos para que não invadam espaços alheios, eduquem suas filhas para serem empoderadas, para se amarem, acima de tudo, independente da aparência. Deixem um mundo melhor para o futuro não tão distante. Ninguém merece ser estuprada, ninguém! E nenhuma vítima é culpada pelo abuso que sofreu. Mulheres, libertem-se! Denunciem! Saiam de relacionamentos no primeiro sinal de abuso. Estamos juntas e, juntas, somos mais fortes!



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