quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Separação


"Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito, mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contadas na história do amor, que é história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a perdir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.
Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real, mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis expressar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser avaporar-se em direção a ela. Mais tarde, lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.
Seus olhos fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.
Fechou os olhos tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado e dele separada por motivos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto estava ali, a poucos passos, sua forma feminina, que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com seus beijos e agasalhara nos instantes de amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em sua cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.
De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde... "

Vinícius de Moraes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário